Cultura

É a vida

Finalmente choveu ontem à tarde. Uma chuva simbólica, um aviso para que não percamos nossas últimas esperanças

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Finalmente choveu ontem à tarde. Não uma chuva daquelas de arrancar árvores e arrastar carros, como se tem visto com indesejável frequência, nem das que nos lavam ruas e telhados, as benfazejas. Não, não chegou a tanto. Foi mais uma chuva simbólica, um aviso para que não percamos nossas últimas esperanças. Talvez um gesto da natureza, um gesto relutante, querendo se tornar afago. Pouco importa: choveu o suficiente para que todos aqui de casa saíssemos ao jardim para celebrar com alegria e respeito panteísta esta manifestação da natureza. Apesar de tão maltratada, como ela é, ainda manda este chuvisqueiro para sabermos que ela não nos esquece.

Tuias e arecas festejaram à sua maneira quase silenciosa, mas era evidente, pelo sorriso mal retido, que se alegravam com aquela água minguada escorrendo por suas folhas e troncos. Também festejei, deixando que aqueles riscos frios viessem desmanchar-se em minha cabeça. Na verdade, todos festejamos. Mais que todos, contudo, festejava um pardal pousado em cima do muro aqui ao lado, no jardim.

Indiferente à sua pequena audiência (parece-me que os pardais não fazem questão de grande público), ele saltitava no mesmo lugar, a cabeça ocupando os quatro pontos cardeais, cada um à sua vez. Sacudia-se como um sorriso, abria e fechava as asas, então olhava em volta, talvez com medo de parecer ridículo. Recomeçava tudo mais agitado ainda, enfiava o bico por baixo das roupas molhadas, espanejava-se, o corpo inteiro participando do cerimonial. Quando parecia impossível uma novidade a mais, soltou extenso e feliz chilreio, parando, em seguida, para observar o efeito de sua bravata. Ele todo, com sua pequena vida bem presa na mão, ocupado em celebrar o eterno retorno.

E eu, que nada podia fazer além de me sentir fascinado, lembrei-me de dois momentos sagrados vividos alguns tempos atrás. E não é para isso que existe a memória? As alegrias ficam presas em nosso peito e voltam espontaneamente ou vamos buscá-las onde estão guardadas.

O primeiro, deu-se numa sala de cinema. Na tela, aquele nonagenário vivido pelo Marcos Nanini. Um velhinho tão pardalmente alegre, saltitante, carregando no corpinho frágil tanta vivacidade que por momentos esperava-se vê-lo sair voando. Impossível não pensar no filme Copacabana, vendo o pardal fazendo festa naquele palmo de muro. Os dois são irmãos, não adianta torcerem o nariz cheios de dúvidas.

Houve ainda outro momento semelhante ao primeiro. Desta vez, aqui mesmo, nesta biblioteca, testemunha de batalhas terríveis entre este escrivinhador e as palavras, mas também de momentos de raro prazer, principalmente o prazer das descobertas. Estava descobrindo a Cíntia Moscovich. E não conhecê-la antes era um peso com que tinha de arcar misturado a um difuso sentimento de culpa. Seu conto Zulu, o terceiro da coletânea Anotações durante o incêndio, é muito mais do que um conto narrado com delicadeza, numa linguagem surpreendente. Ele é um hino à vida e ao amor. Observem estes dois últimos períodos do conto. A narradora, mãe, fala de sua filha:

“Tenho aprendido muito com Anabel. Como, por exemplo, o instinto dócil e novo de amar coisa nascida de outra”.

Era a gata Zulu, que, adotada pela família, acabava de parir sete pequeninas formas de vida.

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