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Doutor coveiro

Mário Cabral se divide entre o ofício de agente funerário e o doutorado em História da Arte pela prestigiada Unifesp

Multitalentoso. Cabral é autor de livros de literatura de cordel e não pensa em trocar de emprego. “O trabalho com a morte me permite que faça tudo em vida” – Imagem: Ronaldo Lages e Arquivo pessoal
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Contratado no auge da pandemia de Covid-19, o agente funerário Mário Cabral passou por um teste de aptidão física antes de ser efetivado na função. O candidato precisava provar ser capaz de abrir uma cova no tempo exigido pelas contingências do momento. Por recomendação das autoridades sanitárias, cada funeral deveria ser realizado em até dez minutos, com poucos familiares autorizados a acompanhar o sepultamento. “Foi um período complicado, fazíamos entre 30 e 35 enterros diários. Os números haviam triplicado e cinco colegas desistiram do trabalho, devido às jornadas extenuantes e a elevada carga emocional”, relembra o servidor do Necrópole do Campo Santo, também conhecido como Cemitério Vila Rio, o maior da cidade de Guarulhos, com cerca 180 mil metros quadrados.

Com experiência anterior na construção civil, Cabral não teve dificuldades de passar no teste físico. Já a prova escrita, bem… Essa etapa foi ainda mais fácil. Graduado em História, o servidor colecionava títulos de especialização e estava prestes a concluir seu mestrado em Ciências Sociais na Unifesp quando prestou o concurso público para coveiro, em 2020. Agora, divide-se entre o ofício e o doutorado em História da Arte pela mesma universidade, com uma pesquisa sobre a difusão, pelas redes sociais, do repente nordestino, da poesia de cordel e da viola caipira

“Nasci e cresci em Guarulhos. Apesar do sotaque puxado, não sou nordestino, mas meus pais vieram do Cariri paraibano. Peguei o gosto pela cultura nordestina, que virou objeto das minhas pesquisas”, conta com entusiasmo. Filho de um motorista de ônibus e de uma auxiliar de enfermagem, que migraram para a região metropolitana de São Paulo no fim dos anos 1970, desde muito cedo Cabral ouvia os repentistas e cantadores de viola nos discos de vinil do pai. As histórias do povo nordestino, entoadas na voz de tios, foram assimiladas organicamente em sua memória. Quando se deu conta, já era um escritor de cordel.

“No meu tempo, a molecada gostava de ouvir Racionais MC’s, Legião Urbana. Já eu preferia Tião Carreiro, Tonico e Tinoco, Luiz Gonzaga. Esse último era o meu ídolo máximo”, relembra. “Na época, eu pensava? Se tiver a chance de fazer uma faculdade, quero que fosse de algo que eu realmente gosto. Minha paixão era a música antiga, por isso decidi pela História.”

Apesar do gosto peculiar, que lhe rendeu apelidos pouco lisonjeiros dos colegas da escola, teve uma infância feliz nas ruas de terra da periferia da cidade. “Asfalto só fomos ter muitos anos depois”, conta. No colégio, demonstrava especial predileção pelas ciências humanas e certa dificuldade para lidar com números – matemática e física eram as disciplinas que mais assombravam o jovem estudante. Desde o ensino médio, precisou conciliar os estudos com o trabalho, para ajudar nas despesas da casa. “Aos 24 anos, quando entrei na faculdade com a nota do Enem, trabalhava como servente de pedreiro. De dia, na betoneira. À noite, na sala de aula, estudando a filosofia de Hegel e o materialismo histórico de Marx”, conta. “A maior dificuldade era vencer o cansaço.”

A paixão pela literatura de cordel o fez criar, em parceria com alguns colegas, um selo editorial para que pudesse divulgar seus versos, escritos por anos a fio nos caderninhos de anotações. Deles saíram Cordéis Dedicados (2016) e Lamentos e Memórias em Rimas Simplórias (2018). Um dos companheiros da empreitada poé­tica é Daniel Neves, outro rapaz apaixonado por livros. “Nossa amizade é muito demarcada pela arte aqui no bairro”, comenta o amigo. “Temos afinidade porque também escrevo cordel. Trocávamos muitas ideias do que cada um escrevia em nossos cadernos e, mais tarde, fomos digitando todo o material. Daí surgiu o desejo de publicar. Notamos que o mercado editorial é muito concorrido e fechado, não costuma acolher nomes desconhecidos. A saída foi organizar nós mesmos uma editora. Então nasceu a Letras do Subsolo.”

Sobre o colega ter chegado tão longe nos estudos, Neves aponta a oportunidade de acesso às universidades que a classe trabalhadora teve nos últimos anos. “Mário é uma pessoa muito singular, pois trafega em diversos espaços, do mundo acadêmico ao universo da cultura popular, na quebrada. A periferia tem poucos equipamentos culturais, mas possui uma cultura vibrante.”

Professor do Instituto Federal de São Paulo, Vagner Luís da Silva, responsável por orientar Cabral numa especialização na área de educação, concluída simultaneamente com o mestrado, atesta o comprometimento do ex-pupilo. “É um sujeito esforçado e engajado naquilo que faz. Essas virtudes o fazem transpor as barreiras que lhe são impostas”, diz o mestre.

Engana-se, porém, quem acredita que Cabral não gosta do ofício entre as lápides. A jornada de 12 horas de trabalho por 36 de descanso permite-lhe não apenas dar sequência ao doutorado, como também cursar o bacharelado em Filosofia, outra paixão do mestre coveiro. Entrou no curso de graduação por meio do sistema de reingresso da Unifesp. “Eu trabalho com a morte, e o trabalho com ela me permite que faça tudo em vida.” •

Publicado na edição n° 1288 de CartaCapital, em 06 de dezembro de 2023.

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