Cultura

Do show na USP em 73 ao Lula Livre, “Cálice” se impõe a Gilberto Gil

Compositor baiano jamais gravou a canção em um álbum de estúdio e diz ter dificuldade de cantá-la, mas nem sempre consegue afastar-se dela

Gilberto Gil em show na USP em 1973, quando cantou "Cálice" a pedido de estudantes
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Em uma entrevista ao documentário “Canções do Exílio”, Gilberto Gil admite até hoje ter dificuldade de cantar a canção “Cálice”, escrita em parceria com Chico Buarque. O motivo? “Porque ela é sobre a dor, o tormento, a repressão, a censura. E tem essa história do ‘pai’. Eu tenho impressão que é mais por aí, essa imagem da primeira pessoa, da santíssima trindade, com sua sombra permanente sobre nós, essa ideia da paternidade como assalto à autonomia de uma individualidade.”

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A rejeição não é apenas à letra, mas também à melodia “tristonha”. Como bem lembrou Breno Goés, autor de um texto que circulou após Gil e Chico cantarem “Cálice” no festival Lula Livre, realizado neste sábado 28, o compositor jamais gravou a canção para um álbum de estúdio. Preferia, lembra Goés, temperar a tristeza de felicidade e vice-versa, como fez em “Aquele Abraço”, ao se despedir do Brasil rumo ao exílio em tom carnavalesco.

Nem sempre Gil consegue, porém, deixar “Cálice” de lado. Há momentos em que a canção se impõe. Na apresentação no festival Lula Livre, havia um motivo óbvio para cantá-la: o homenageado do evento, preso há mais de três meses em Curitiba, escreveu um artigo intitulado “Afasta de mim esse cale-se”, sobre o veto da Justiça para que o petista conceda entrevistas e grave vídeos de dentro da cadeia.

O incômodo de Gil com a canção não é de hoje: já se fazia presente no ano em foi composta. Durante a Semana Santa de 1973, o compositor baiano e Chico passaram a se reunir para escrever uma música para um show marcado para maio daquele ano no Anhembi, em São Paulo.

Na Sexta-Feira da Paixão, Gil lembrou-se da oração de Jesus na hora da agonia. “Pai, afasta de mim esse cálice, mas seja feita a Vossa vontade”. Associou-a à narrativa bíblica sobre a comunhão, em que o vinho simboliza o sangue de Cristo. O refrão  “Pai, afasta de mim esse cálice/ De vinho tinto de sangue”, escrito por Gil, foi o ponto de partido da canção.

A relação entre “cálice” e “cale-se” foi imeadiatamente apontada por Chico, que a associou ao silêncio imposto pela ditadura. Cada um compôs uma parte da música: além da primeira estrofe, o baiano escreveria a terceira. A Chico, caberia a segunda e a quarta.

Após o veto tardio a “Apesar de Você”, canção de Chico que vendeu 100 mil exemplares em uma semana antes de a ditadura mandar recolher as cópias, a censura estava mais atenta e proibiu “Cálice'”. No dia do show no Anhembi, Chico e Gil insistiram em apresentar a composição, mas a gravadora de ambos, a Polygram, mandou os técnicos de som cortar os microfones. Irritado com a censura, Chico disse: “Vamos para o que pode!”. E cantaram em seguida Baioque.

A faixa só foi formalmente gravada em 1978, quando Milton Nascimento e Chico registraram a faixa no elepê Chico Buarque. Gil nunca a incluiu em um disco de estúdio, mas não foi apenas no festival Lula Livre que abriu uma exeção. No ano em que a ditadura o obrigava a deixar a composição de lado, a resistência estudantil à repressão não o deixou afastar-se de “Cálice”.

Em abril de 1973, o estudante Alexandre Vanucchi Leme foi preso e morto durante uma sessão de torturas no DOI-Codi. Revoltados, jovens denunciaram o crime e convocaram uma missa de sétimo dia em homenagem ao colega, organizada por dom Paulo Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo.

Em seguida, os estudantes paulistanos decidiram organizar um show em 26 de maio na Escola Politécnica da USP. Gil era a grande atração. No meio da apresentação, os jovens clamaram por “Cálice”. Ele desconversou. “Eu canto um pedacinho que eu me lembro só, é porque tem uma parte da letra que é do Chico que eu não lembro. Não cheguei nem a aprender”, justificava-se o compositor baiano. Alguém do público repassou um papel com a letra na íntegra. “Deixa eu cantarolar para vocês, deixa eu ver”, disse Gil, curvando-se à vontade da maioria. Depois de tocar uma versão improvisada, pediu: “Posso ficar com ela (a letra), posso guardar pra mim?”.

Gil pode achar a canção tristonha ou carregada, mas costuma ceder à vontade popular quando ela se impõe. Quando cantou para os estudantes da USP a música censurada, o fez pela imposição de um pedaço de papel repassado por um estudante. No festival “Lula Livre”, abriu novamente uma exceção para homenagear o ex-presidente, que usou a canção para tratar recenetemente de seu caso particular. Assim como em 1973, foi uma folha de papel, desta vez repassada por um notável preso em Curitiba, que estimulou Gil a reaproximar-se de “Cálice”.

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