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Discos e arquivos desempoeirados

Após digitalizar todo o catálogo, a lendária gravadora Som da Gente cede os direitos autorais para os músicos

Discos e arquivos desempoeirados
Discos e arquivos desempoeirados
Entre 1981 a 1991, o selo dedicado ao gênero instrumental lançou 46 álbuns, muitos dos quais são até hoje referência. A lista de artistas inclui Hermeto Paschoal e Roberto Sion – Imagem: Acervo/Som da Gente
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Há muito tempo, mundo afora, quem deseja comprar um disco de música erudita com a garantia da excelência busca o emblema amarelo da Deutsche Grammophon, companhia que lançou trabalhos de maestros como Herbert von Karajan e Carlos ­Kleiber, e de solistas da categoria da pianista Martha Argerich e da violinista ­Anne-Sophie Mutter.

Este singular método de escolha também era comum no Brasil dos anos 1980, só que entre os admiradores de música instrumental. A procura, no caso, era pelo emblema com notas musicais nas cores da bandeira do Brasil do selo Som da Gente, que gravou o que de melhor se produziu do gênero no País.

A Som da Gente teve vida breve, porém intensa. Durou de 1981 a 1991 e, nesse período, lançou 46 álbuns, muitos deles até hoje referências. A lista de artistas inclui Hermeto Paschoal, os saxofonistas ­Hector Costita e Roberto Sion e grupos como Kali e Medusa.

“Para quem fazia música instrumental naquele período, ter um disco lançado por eles era o grande sonho”, diz o violonista Edson Natale, que hoje atua como consultor cultural do projeto. “Os discos do trio D’Alma, por exemplo, foram fundamentais para mim. Além disso, fui quase todos os dias assistir à gravação do disco de piano solo do Hermeto Pascoal.”

Pois a Som da Gente está de volta. Em uma iniciativa inédita no mercado, os responsáveis pelo selo digitalizaram e remasterizaram o catálogo e doaram os direitos para os músicos participantes. No segundo semestre, será lançado o Acervo Som da Gente, plataforma de acesso gratuito que reúne documentos de bastidores, peças iconográficas e registros audiovisuais que contam a história da gravadora independente.

Neste momento no qual a legislação do direito autoral voltou a estar sob intensa discussão, por conta dos modelos de remuneração adotados pelas plataformas de streaming, o movimento chama especial atenção.

Todo o acervo estará numa plataforma de acesso gratuito que reúne documentos de bastidores, peças iconográficas e registros audiovisuais

“Esta é uma das partes mais bonitas desse grandioso processo. Depois de muita, muita conversa, concluímos que o fechamento do ciclo estaria completo se cada músico pudesse decidir o que deseja fazer com suas obras”, diz Carla ­Poppovic, coordenadora do projeto.

“Acredito que seja um caso raro na indústria fonográfica mundial uma gravadora decidir mergulhar na própria história e, dentro desse processo, articular outro tipo de relação com os artistas com os quais construiu a imaterialidade da memória e da história”, prossegue Carla. “É preciso de muito tempo para chegar a essas conclusões que são filosoficamente simples, mas muito intrincadas no tocante às questões jurídicas e afetivas.”

Carla é uma entre os cinco herdeiros do casal Walter Santos e Tereza Souza, cantores, compositores e criadores do Som da Gente. Santos chegou a integrar o Enamorados do Ritmo, grupo que tinha João Gilberto entre seus integrantes. Tereza era letrista e, na idade de ouro da publicidade brasileira, criou temas como o do Banco Bamerindus (O tempo passa, o tempo voa…) e da loja de departamentos Mappin (Mappin/ venha correndo Mappin/ Chegou a hora, Mappin…). Nos anos 1960, mudou do Rio para São Paulo e, na cidade, também Santos passou a se dedicar ao trabalho publicitário.

Em 1974, o casal criou o Nossoestúdio, espaço para a criação de jingles que, posteriormente, se tornaria o Som da ­Gente. Outra filha do casal, a cantora Luciana Souza, é quem explica o porquê de o pai e a mãe se dedicarem à música instrumental. “O músico brasileiro era visto como mero acompanhante”, diz. “Meus pais acharam que seria importante apoiar uma música que contasse histórias, mesmo sem letra, e que valorizasse a improvisação e a diversidade de estilos desses criadores.”

Os herdeiros de Santos e Tereza tiveram apoio financeiro do Instituto Çarê, que patrocina a masterização dos álbuns e a construção da plataforma. A função de digitalizar e remasterizar os trabalhos ficou a cargo de Carlos Freitas, responsável, por exemplo, pelos álbuns ao vivo de João Gilberto e da discografia de Wilson Simonal.

“Era importante preservar a sonoridade da época, mas com uma qualidade e transparência sonora mais atual”, diz Freitas. “Me chamou muito a atenção a qualidade da gravação do piano acústico, orquestras e violão, muito bem captados, especialmente nos álbuns do Hermeto, que, às vezes, usava instrumentos percussivos não muito convencionais. Tentei, por fim, valorizar cada detalhe do álbum.”

Os discos estão sendo entregues aos autores para que cada um possa lançá-los da maneira que preferir. Hermeto, por exemplo, disponibilizou os cinco álbuns nas plataformas de streaming e pretende produzir edições em vinil desses trabalhos.

O saxofonista Roberto Sion também optou pelo streaming e está em conversas com um selo português para lançar o álbum por lá. Já o pianista Amilson­ ­Godoy tem projetos mais ambiciosos: “Penso em preparar uma versão orquestral do repertório dos discos do Medusa e do meu disco solo ao lado do meu grupo sinfônico, a Sinfônica Pop Arte Viva”. Carla Poppovic faz coro com Amilson e aposta: “Outros capítulos virão”. •

Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.

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