Cultura
Direitos em jogo
Uma audiência pública realizada no Senado expõe os principais pontos em disputa na regulação do streaming


Estima-se que o faturamento dos três principais serviços de assinatura de vídeo sob demanda do País supere 14 bilhões de reais anuais. Estima-se ainda que a Netflix, sozinha, tenha entre 15 milhões e 20 milhões de assinantes – número superior aos 12 milhões que pagam por todos os serviços de televisão por assinatura juntos.
Esses dados, apresentados por Thiago Mafra, diretor da Agência Nacional do Cinema (Ancine), durante a audiência pública realizada na semana passada na Comissão de Educação e Cultura do Senado, dão a dimensão do que significa não se ter conseguido, até agora, incluir o streaming no ordenamento jurídico do audiovisual.
Embora 12 anos tenham corrido desde que a Netflix foi lançada aqui, os 59 serviços de VoD (Video on Demand) que operam no Brasil não têm uma regulação específica, ao contrário do que acontece com outros segmentos do mercado, como as tevês paga e aberta e as salas de cinema. E a solução para esse vácuo regulatório passa, necessariamente, pelo Congresso Nacional.
Neste momento, estão em tramitação dois Projetos de Lei (PLs) que propõem regramentos e estabelecem a incidência da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine) para os serviços de VoD.
A Condecine é um tributo criado em 2001, recolhido atualmente por empresas de publicidade, distribuidoras de filmes estrangeiros, canais de TV e empresas de telecomunicações, integradas ao ecossistema audiovisual pelo fato de o vídeo responder por 80% do tráfego de dados em dispositivos móveis.
As plataformas, a julgar pelo que disseram na audiência pública Netflix, Amazon Prime Video e Motion Picture Association (MPA), estão cientes de que a Condecine é incontornável. O que elas tentam garantir é o porcentual mínimo desse imposto: 1% sobre o faturamento bruto. As entidades representativas dos produtores de filmes e séries pedem que esse porcentual varie de acordo com o tamanho e o perfil da plataforma, podendo chegar a 4%.
O destino dos recursos oriundos da Condecine é o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), fundo público cujo princípio é promover o desenvolvimento da indústria audiovisual brasileira. Hoje, boa parte dele é alimentada pela Condecine arrecadada pelas teles, que chega, em média, a 1 bilhão de reais por ano. É certo que a nova Condecine engordará esse cofre.
Entre os modelos em discussão, alguns abrem a possibilidade de um abatimento na Condecine caso as plataformas invistam parte do imposto em produções brasileiras escolhidas por elas próprias. Mas, nesse ponto, chega-se ao nó desse cabo de guerra: os direitos de propriedade.
Os PLs trazem variações no tratamento desse tema, que, por estar no coração da indústria de bens simbólicos, mostra-se bastante sensível e nuançado.
Para os produtores brasileiros, a regulação significa a possibilidade de se tornarem, eles próprios, os detentores dos direitos das obras feitas para o streaming.
Por ora, quase todas as séries realizadas pelas plataformas no Brasil foram produzidas com recursos 100% privados e, por isso, pertencem aos grupos estrangeiros. São esses os casos da série Cangaço Novo, que chegou ao Top 10 da Prime Video; Sintonia, que teve quatro temporadas na Netflix; e Senna, também da Netflix, que está sendo rodada e será a série de maior orçamento já feita no Brasil.
Os produtores brasileiros querem ser os detentores dos direitos patrimoniais das obras feitas para plataformas de VoD
Nos três exemplos, as plataformas contrataram empresas brasileiras para colocar as séries de pé – O2, Losbragas e Gullane, respectivamente –, mas como prestadoras de serviços. Ou seja, elas são remuneradas pela produção, mas não partilham do lucro gerado pelas obras.
As plataformas têm defendido – como se viu na audiência – que sua parcela de obrigações recaia, sobretudo, no chamado “investimento direto”. Nesse caso, a lei estabeleceria um porcentual mínimo do faturamento a ser alocado em produções brasileiras, mas a decisão de onde investir caberia às empresas, sem envolvimento da Ancine. O ponto de discórdia é: esse investimento teria de ir para obras independentes ou pode ser usado nos originais, de propriedade de Netflix, Prime Video, HBO Max etc.?
Outro tema que se mostrou espinhoso foi o da cota de tela. Joelma Gonzaga, secretária do Audiovisual do Ministério da Cultura, citou a experiência da União Europeia, que prevê que 30% dos catálogos sejam compostos de obras produzidas pelos países membros. Andressa Papas, da MPA, respondeu indiretamente à secretária, afirmando ser o mercado europeu “mais consolidado” que o nosso e ponderando que a maioria dos países optou por não aplicar tal recomendação.
Ainda que evitem bater de frente com a proposta das cotas – instrumento que, ao ser contestado judicialmente, já foi considerado legítimo pelo Supremo Tribunal Federal –, as portas-vozes de Netflix e Prime Video insistiram em sua ineficácia em um ambiente no qual a oferta é infinita e não há um programador envolvido, como acontece no cinema e na tevê paga. Ambas defenderam que a regulação se restrinja à exigência de proeminência, que significa a garantia de visibilidade para obras brasileiras disponíveis.
O jogo é complexo e, embora traga muitos elementos que marcaram a política do cinema no século XX, é também novo. E as regras que forem definidas agora determinarão, em grande medida, que cara terá o audiovisual brasileiro nesta nova era. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Direitos em jogo’
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