Cultura

Desgraça universal

Piadas, discursos e privilégios masculinos mostram que, como no Egito do filme, estamos longe da Primavera Árabe contra a banalização da tirania

O abuso nosso de cada dia pode ser visto em qualquer ônibus de qualquer linha da Paulista: a violência é universal
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Não é preciso pegar um ônibus no Egito para imaginar a cena: em meio à lotação, meninas e mulheres são obrigadas a se esquivar de corpos insinuantes de quem se aproveita da falta de espaço para apresentar sua covardia. Basta pegar qualquer condução na avenida Paulista para uma viagem só de ida à realidade que “Cairo 678” tenta mostrar. Lá, como cá, ainda estamos longe da Primavera Árabe contra a banalização da tirania cotidiana.

No filme, três personagens sofrem algumas das agressões mais comuns contra a mulher – e talvez por isso o filme tenha feito tanto sucesso em salas de cinema mundo afora. A opressão começa dentro de casa. Diante dos desmandos do marido, que a vê como a extensão do próprio corpo e território de uma só vontade, a mulher morde cebola crua antes de dormir para despistar o inimigo íntimo; para economizar dinheiro com táxi, se permite andar em conduções lotados, onde é vítima de todo tipo de provocação.

 

Outra personagem ousa comemorar a vitória da seleção de futebol egípcia entre homens e é arrastada por um grupo que a violenta no meio da multidão; mais que a violência, ela passa a ser vítima também da “honra” do noivo que a rejeita após o episódio.

A terceira é uma operadora de telemarketing que passa o dia ouvindo gracejos de potenciais clientes, e é orientada a aturá-los para não perder o emprego. Sonha em se tornar apresentadora de stand up comedy, mas se depara com uma plateia fria diante de uma humorista mulher. Um dia, é agredida na rua e resolve denunciar o sujeito. Esbarra em todo tipo de dificuldades para levar o caso adiante, do delegado que se nega a registrar o abuso aos familiares do noivo, que não querem se expor.

A proposta, ao que parece, é fazer do filme um grito de indignação. Tanto que o diretor, Mohamed Diab, não poupou as tintas sobre os agressores. Não há firulas para identificá-los como vilões. A mensagem é direta. Com uma exceção apenas, todos são definitivamente ogros, e isso está claro tanto nos diálogos como nas sobrancelhas que acusam o deboche e a violência.

Para quem gosta de panfleto, é um prato cheio – e o filme, de fato, tem muitos acertos: parte de uma região conturbada, onde imperam direitos civis mal alicerçados, para desenhar uma espécie de estrutura elementar da tirania. A história se passa no Cairo, mas a mensagem é lida em qualquer parte do Ocidente.

Mas a falta de sutileza do filme chega a incomodar. Nem sempre a violência, na vida real, é escancarada como faz pensar o filme. Basta pensar em alguns casos recentes vividos bem ao lado. Por aqui, parlamentares evitam votar uma lei que equipara salário entre homens e mulheres por pressão de grupos de interesse. No Big Brother, uma participante bebe demais, recebe a visita de um amigo na cama e diz não saber, no dia seguinte, se teve sexo ou não. Oficialmente, todos evitam falar em abuso, e a Justiça acaba de arquivar a história, mas a reação do público foi digna de um picadeiro: “ela provocou”, “bebeu porque quis”, “corpo de bêbado não tem dono”. É como se o discurso legitimasse (ou minimizasse) uma violência consolidada.

Os exemplos pipocam. É só lembrar que, por aqui, todos adoram odiar a “loraburra”, termo que nunca mais saiu de moda desde que virou hit do rádio nos anos 90. Não se sabe até hoje se Silvio Santos ou o Faustão leram algum livro um dia na vida, mas todos têm sua seleção de patacoadas favoritas protagonizadas pelas apresentadoras mulheres, da Loira do Tchan que errava as contas e nomes ao vivo às eternas ex (tenham talento ou não, elas serão sempre as “ex” do Pelé, do Ronaldo ou do Mick Jagger). Era moda aos domingos: colocavam as mulheres para rebolar 24 horas em cima de um tambor e estranhavam quando elas diziam ignorar quem eram os autores clássicos da literatura. O estereótipo da “loraburra” – medíocres e deprimentes, como na música – caiu como uma luva na boca dos machões úteis e invulgares. O caso mais recente é a forma como foi divulgada a investigação de crimes cometidos por um grupo de mulheres – que ganhou o nome de “gangue das loiras”. Alguém se lembra de alguma “gangue dos loiros”?

No País que elegeu, há menos de dois anos, sua primeira mulher presidenta (ainda assim só depois de ela se posicionar contra o aborto e outros temas delicados), só 10% dos municípios possuem delegacias para mulheres. Em outros lugares, o constrangimento de se levar uma agressão adiante é uma fratura exposta. Nas ruas, um simples shorts é manancial para todo tipo de impropério gratuito que brotam das ruas e viram esquete de um programa de humor; até bem pouco tempo atrás, estudou-se a criação de vagões exclusivos para mulheres para evitar o assédio no metrô – e ainda estamos longe de exigir o uso de burkas para evitar pensamentos impuros.

A violência também é, portanto, sutil e pulverizada. Muitas vezes, ao abordar um tema tão delicado, é inevitável forçar a mão. Mas “Cairo 678” peca nos detalhe e leva as próprias vítimas a caírem em estereótipos – justamente os estereótipos que há anos se quer eliminar, como as supostas fragilidades e desorientações e as dependências do apoio masculino num mundo supostamente feito por homens, para os homens.

Como se os homens fossem um mau necessário, as personagens do filme aparecem, no fim das contas, vítimas de uma submissão anterior do qual não se livram: embora indignadas, são anuladas pela própria revolta; soam assim “sem gosto ou vontade, sem defeitos nem qualidades”, apesar do desejo de mudar as coisas (de modo trágico e desarticulado). Sem o cuidado necessário, acabam retratadas como atores incapazes de se compreender e se posicionar dentro da própria história como agente.

Algo bem diferente das grandes personagens femininas levadas à tela em tempos atuais por nomes como Lars von Trier e Pedro Almodóvar – e, mais recentemente, Nadine Labaki, diretora do impressionante (e tão combativo quanto delicado) “Caramelo”. Ainda sobre a vileza humana, que não gênero nem sexo, mas desemboca em lados desiguais, há em cartaz uma opção mais interessante: a história de Albert Nobbs, mulher interpretada por Glenn Close que se veste de homem para se impor e se proteger num mundo regrado pelas distorções sociais e humanas. O filme de Rodrigo Garcia concorreu ao Oscar em três categorias, incluindo melhor atriz. Tudo porque conseguiu abordar o tema sem apelos além dos inevitáveis.

De todo modo, tratar da alma feminina e sair ileso é tarefa tão difícil quanto inglória, e os que venceram o desafio tomaram caminho diferente de “Cairo 678”. Não precisaram gritar para serem ouvidos. Bastou não menosprezar espectadores, personagens nem a própria história que tinham em mãos.

Não é preciso pegar um ônibus no Egito para imaginar a cena: em meio à lotação, meninas e mulheres são obrigadas a se esquivar de corpos insinuantes de quem se aproveita da falta de espaço para apresentar sua covardia. Basta pegar qualquer condução na avenida Paulista para uma viagem só de ida à realidade que “Cairo 678” tenta mostrar. Lá, como cá, ainda estamos longe da Primavera Árabe contra a banalização da tirania cotidiana.

No filme, três personagens sofrem algumas das agressões mais comuns contra a mulher – e talvez por isso o filme tenha feito tanto sucesso em salas de cinema mundo afora. A opressão começa dentro de casa. Diante dos desmandos do marido, que a vê como a extensão do próprio corpo e território de uma só vontade, a mulher morde cebola crua antes de dormir para despistar o inimigo íntimo; para economizar dinheiro com táxi, se permite andar em conduções lotados, onde é vítima de todo tipo de provocação.

 

Outra personagem ousa comemorar a vitória da seleção de futebol egípcia entre homens e é arrastada por um grupo que a violenta no meio da multidão; mais que a violência, ela passa a ser vítima também da “honra” do noivo que a rejeita após o episódio.

A terceira é uma operadora de telemarketing que passa o dia ouvindo gracejos de potenciais clientes, e é orientada a aturá-los para não perder o emprego. Sonha em se tornar apresentadora de stand up comedy, mas se depara com uma plateia fria diante de uma humorista mulher. Um dia, é agredida na rua e resolve denunciar o sujeito. Esbarra em todo tipo de dificuldades para levar o caso adiante, do delegado que se nega a registrar o abuso aos familiares do noivo, que não querem se expor.

A proposta, ao que parece, é fazer do filme um grito de indignação. Tanto que o diretor, Mohamed Diab, não poupou as tintas sobre os agressores. Não há firulas para identificá-los como vilões. A mensagem é direta. Com uma exceção apenas, todos são definitivamente ogros, e isso está claro tanto nos diálogos como nas sobrancelhas que acusam o deboche e a violência.

Para quem gosta de panfleto, é um prato cheio – e o filme, de fato, tem muitos acertos: parte de uma região conturbada, onde imperam direitos civis mal alicerçados, para desenhar uma espécie de estrutura elementar da tirania. A história se passa no Cairo, mas a mensagem é lida em qualquer parte do Ocidente.

Mas a falta de sutileza do filme chega a incomodar. Nem sempre a violência, na vida real, é escancarada como faz pensar o filme. Basta pensar em alguns casos recentes vividos bem ao lado. Por aqui, parlamentares evitam votar uma lei que equipara salário entre homens e mulheres por pressão de grupos de interesse. No Big Brother, uma participante bebe demais, recebe a visita de um amigo na cama e diz não saber, no dia seguinte, se teve sexo ou não. Oficialmente, todos evitam falar em abuso, e a Justiça acaba de arquivar a história, mas a reação do público foi digna de um picadeiro: “ela provocou”, “bebeu porque quis”, “corpo de bêbado não tem dono”. É como se o discurso legitimasse (ou minimizasse) uma violência consolidada.

Os exemplos pipocam. É só lembrar que, por aqui, todos adoram odiar a “loraburra”, termo que nunca mais saiu de moda desde que virou hit do rádio nos anos 90. Não se sabe até hoje se Silvio Santos ou o Faustão leram algum livro um dia na vida, mas todos têm sua seleção de patacoadas favoritas protagonizadas pelas apresentadoras mulheres, da Loira do Tchan que errava as contas e nomes ao vivo às eternas ex (tenham talento ou não, elas serão sempre as “ex” do Pelé, do Ronaldo ou do Mick Jagger). Era moda aos domingos: colocavam as mulheres para rebolar 24 horas em cima de um tambor e estranhavam quando elas diziam ignorar quem eram os autores clássicos da literatura. O estereótipo da “loraburra” – medíocres e deprimentes, como na música – caiu como uma luva na boca dos machões úteis e invulgares. O caso mais recente é a forma como foi divulgada a investigação de crimes cometidos por um grupo de mulheres – que ganhou o nome de “gangue das loiras”. Alguém se lembra de alguma “gangue dos loiros”?

No País que elegeu, há menos de dois anos, sua primeira mulher presidenta (ainda assim só depois de ela se posicionar contra o aborto e outros temas delicados), só 10% dos municípios possuem delegacias para mulheres. Em outros lugares, o constrangimento de se levar uma agressão adiante é uma fratura exposta. Nas ruas, um simples shorts é manancial para todo tipo de impropério gratuito que brotam das ruas e viram esquete de um programa de humor; até bem pouco tempo atrás, estudou-se a criação de vagões exclusivos para mulheres para evitar o assédio no metrô – e ainda estamos longe de exigir o uso de burkas para evitar pensamentos impuros.

A violência também é, portanto, sutil e pulverizada. Muitas vezes, ao abordar um tema tão delicado, é inevitável forçar a mão. Mas “Cairo 678” peca nos detalhe e leva as próprias vítimas a caírem em estereótipos – justamente os estereótipos que há anos se quer eliminar, como as supostas fragilidades e desorientações e as dependências do apoio masculino num mundo supostamente feito por homens, para os homens.

Como se os homens fossem um mau necessário, as personagens do filme aparecem, no fim das contas, vítimas de uma submissão anterior do qual não se livram: embora indignadas, são anuladas pela própria revolta; soam assim “sem gosto ou vontade, sem defeitos nem qualidades”, apesar do desejo de mudar as coisas (de modo trágico e desarticulado). Sem o cuidado necessário, acabam retratadas como atores incapazes de se compreender e se posicionar dentro da própria história como agente.

Algo bem diferente das grandes personagens femininas levadas à tela em tempos atuais por nomes como Lars von Trier e Pedro Almodóvar – e, mais recentemente, Nadine Labaki, diretora do impressionante (e tão combativo quanto delicado) “Caramelo”. Ainda sobre a vileza humana, que não gênero nem sexo, mas desemboca em lados desiguais, há em cartaz uma opção mais interessante: a história de Albert Nobbs, mulher interpretada por Glenn Close que se veste de homem para se impor e se proteger num mundo regrado pelas distorções sociais e humanas. O filme de Rodrigo Garcia concorreu ao Oscar em três categorias, incluindo melhor atriz. Tudo porque conseguiu abordar o tema sem apelos além dos inevitáveis.

De todo modo, tratar da alma feminina e sair ileso é tarefa tão difícil quanto inglória, e os que venceram o desafio tomaram caminho diferente de “Cairo 678”. Não precisaram gritar para serem ouvidos. Bastou não menosprezar espectadores, personagens nem a própria história que tinham em mãos.

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