Cultura

Descolada de gigantes do setor, produção de indie games cresce no País

À sombra de um mercado hegemônico de jogos virtuais, que movimenta bilhões por ano, chamado triple A, cresce a passos largos os indie games, lançados por pequenos produtores e empresas independentes. Com baixo orçamento, suas equipes são pequenas, às vezes não chegam a 20 funcionários. Quem programa o jogo, […]

ndie games: estética nostálgica e desvinculados do mercado tradicional (Foto: Acervo Pessoal/Wellington Fattori)
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À sombra de um mercado hegemônico de jogos virtuais, que movimenta bilhões por ano, chamado triple A, cresce a passos largos os indie games, lançados por pequenos produtores e empresas independentes.

Com baixo orçamento, suas equipes são pequenas, às vezes não chegam a 20 funcionários. Quem programa o jogo, geralmente também participa da criação do roteiro e da escolha visual. Há liberdade para fugir das narrativas exaustivamente exploradas nos games convencionais e contar novas histórias. Esteticamente, os jogos costumam ser nostálgicos, por conta dos recursos modestos para o desenvolvimento.

É preciso determinação e pé firme para não ser engolido pelas gigantes do ramo. No Brasil, isso é um pouco mais fácil. As grandes empresas ainda não estão tão presentes e a maioria da produção por aqui se limita aos jogos independentes.

Em oito anos, o número de empresas desenvolvedoras de games no País cresceu 600%. No ano passado, a Associação Brasileira de Games (Abragames) contabilizou 300 empresas, enquanto que em 2008, eram 43. Em 2016, o setor faturou 1,6 bilhão de dólares no Brasil. Mesmo ano em que, segundo o IBGE, o resto do setor de serviços registrava queda de 4,6%.

Com esse crescimento, surgem casos de sucesso. Wellington Fattori é um exemplo. Aos 34 anos, ele se prepara para embarcar para Dubai, onde começará a criar em uma empresa de indie games. Há um ano ele trabalhava em uma empresa de publicidade em São Paulo, como artista visual.

Uma game jam foi responsável por colocá-lo no mercado independente. Jams são competições em que artistas, desenvolvedores e programadores de games criam um jogo do zero, sozinhos ou em pequenas equipes, em até 48 horas. Wellington se aventurou em duas. “Juntamos um grupo de desconhecidos, com pouco tempo, muitas ideias e muito trabalho para colocar em prática”, conta ele. Uma das sessões resultou no game Chain Reaction.

O jogo gerou repercussão. No mês passado Wellington foi convidado pelo Instituto Goethe para fazer parte do A MAZE, em Berlim, um festival internacional focado na cultura dos games independentes. Ele e sua equipe foram indicados ao prêmio Novos Talentos e ficaram, no final de uma semana, em 5o lugar geral na votação aberta ao público. Ele foi o único brasileiro a participar da premiação.

No mesmo festival esteve Caroline Ferreira Amaral, artista brasileira de 22 anos, da Kinship Entertainment. Ela, que estuda Jogos Digitais na Fatec de São Caetano do Sul, foi uma das mulheres escolhidas para visitar o A MAZE Festival por intermédio do programa de residência para desenvolvedoras, o Mulheres no Jogo, da Abragames em parceria com o governo da Alemanha. Carol produziu em estúdios locais e entrou em contato com as mulheres da cena internacional.

Caroline nunca trabalhou em uma empresa triple A e tem trilhado toda a sua carreira no setor de indie games. “Só depois de saber que existiam profissionais dedicados a fazer obras independentes, com maior liberdade criativa, resolvi que era o que eu queria seguir”, conta ela. Atualmente, ela desenvolve o jogo Skydome.

Novas narrativas

Jogos independentes não são sinônimo de empresas nanicas ou sem experiência. São, na verdade, independentes das escolhas do mercado. Eles estão no caminho oposto estão astriple A, que repetem fórmulas e padrões com os quais o mercado já está acostumado, para poder garantir suas vendas.

Os artistas entrevistados explicam que, por serem empresas independentes que não lidam diretamente com o mercado financeiro, elas têm mais liberdade para arriscar. Podem criar não como o mercado dita, mas de forma autoral.

“Os indie games não dependem de um grande financiamento e da aprovação de executivos”, explica Carol. “Qualquer pessoa interessada pode fazer uso de diversos recursos disponíveis e criar seu próprio jogo. Isso os torna uma das mídias mais democráticas e que mais permitem que minorias expressem suas experiências e tenham suas vozes ouvidas.”

“Empresas alternativas têm a chance de contar histórias que só elas podem. Eles refletem problemas e anseios bem mais amplos do que os jogos mainstream, que têm uma preocupação maior de se sustentar financeiramente”, explica Wellington. “É um grupo pequeno que produz o jogo antes de se preocupar com os números”,

As narrativas podem transparecer pessoalidade e contar histórias reais. Assuntos como saúde mental, racismo, sexualidade e machismo podem ser tratados de forma aprofundada, por meio de histórias com as quais o público pode se identificar. “O jogador pode entrar em contato com narrativas que não contêm mecânicas de violência e em que os personagens fazem parte de minorias sociais”, explica. O artista cita casos famosos, como o War of Mine, que aborda o tema dos sobreviventes de guerra e o Not Civil Unrest, um simulador de protestos.

Para Wellington, parece haver confusão dentro da indústria de games em relação ao termo “temas adultos”. Nos jogos convencionais, essa temática se traduz em narrativas misóginas, permeadas por representações que objetificam e sexualizam as personagens femininas. “Na verdade, temas adultos deveriam abordar depressão, síndrome do impostor, questões de sexualidade e relações humanas, por exemplo”, argumenta Wellington.

201838103747_fatec_scs_alemanha_Divulgacao.jpgCaroline, com apenas 22 anos, foi escolhida para imersão em Berlim (Facebook/Reprodução)

A artista Caroline conta que ser mulher no mundo dos games é desafiador. Constantemente ela tem que provar suas habilidades diante de homens e que o preconceito está presente nas relações de trabalho. A forma como a produção dos games se estrutura influi diretamente no resultado final.

Ela explica que a indústria dos games tem dificuldade em enxergar as mulheres como público-alvo, apesar de elas serem 53,6% desse público. “Por muito tempo essa indústria foi regida pelas grandes produções e tinha seu marketing voltado ao público branco, masculino e heterossexual”, argumenta ela.

Segundo pesquisa da agência de tecnologia SIOUX, 90,2% dentre as 500 mulheres entrevistadas não se sentem representadas pelas imagens femininas presentes nos jogos mais famosos. “O papel feminino costumava ser o de eye candy, com personagens estereotipadas e sexualizadas, em papéis secundários e dependentes dos protagonistas masculinos”.

No cenário dos indie games essa representação, hora de donzelas a serem salvas pelos heróis, ora de mulheres vazias e sexualizadas, começa a perder espaço. “Os personagens passaram a ser mais verossímeis e diferenciados. As mulheres começaram a ser representadas como reais, com tipos físicos, etnias e personalidades diferentes”, explica Caroline.

“Essa mudança hoje influencia toda a indústria de jogos. Até grandes produções passaram a ser mais diversas em suas representações”, completa. O A Maze Festival, por exemplo, passou a focar suas game jams em temáticas voltadas para a arte e para a política. “Emancipação” foi o tema da jam da qual Wellington participou.

O raio-x brasileiro

Um grande marco para o mercado brasileiro se deu quando a Agência Nacional de Cinema (Ancine) passou a considerar o game como mídia audiovisual. “Isso mudou muito a nossa possibilidade de financiamento”, explica Saulo Camarotti, diretor da Abragames no centro-oeste brasileiro.

“Agora a gente pode se capitalizar pelo governo, produzir conteúdos autorais e até se lançar internacionalmente.” Segundo o diretor, a Ancine já investiu mais de 20 milhões no mercado nacional nos últimos dois anos, por meio, por exemplo, de editais de fomento. “É possível que em cinco anos a realidade brasileira seja outra”, explica.

Wellington sente que o mercado nacional de indie games está em ascensão e, segundo ele, prestes a experimentar um boom. “Temos eventos e diversas game jams pelo Brasil que são ótimas oportunidades para os profissionais interagirem”, conta o artista. “A cena não está tão concentrada em São Paulo. Muitos jogos têm saído de outros estados também”, conta, citando a capital federal.

Parte da cena brasiliense é composta pela Behold Studios, uma produtora de games composta por 12 pessoas que há seis anos se dedica à produção autoral. Saulo é um dos produtores da Behold. Ele está no mercado desde 2009, quando abriu a empresa, inicialmente focada em prestação de serviços no área dos games.

31252900_10214580022387578_3655369893085184000_n.jpgWellington e equipe do Chain Reaction no A MAZE Festival, em Berlim (Arquivo Pessoal)

“Ao mesmo tempo que foi surgindo a nossa vontade de criar jogos autorais, a gente percebeu que no mundo esse movimento também estava acontecendo. Tornou-se possível vender nossos próprios jogos. Os canais estavam abertos e a tecnologia, acessível”, explica Saulo. Esses canais continuam se abrindo. Hoje em dia plataformas digitais estão disponíveis para que o produtor lance seu jogo, como a famosa Steam, e até cobre por eles.

Para ganhar popularidade entre os aficionados por games, os produtores da Beholdinvestiram em algo que faz muito sucesso no exterior: os festivais. Assim nasceu o Festival Brasiliense de Indie Games, o BRING. Os encontros começaram com jovens e seus computadores, em bares, compartilhando suas experiências na criação de games.

Em poucos anos, tornou-se um evento que atrai toda uma comunidade aficionada por jogos independentes. O festival, desde seu início, oferece cursos, palestras e game jams. Hoje em dia,  é uma das oportunidades que o produtor brasileiro tem para expor seus jogos.

Para Saulo, a produção brasileira ainda lida com alguns percalços muito parecidos com o que se vê em outros países. “Há dificuldade para conseguir investimento, acertar uma ideia e propor algo que alguém vai querer comprar”, explica.

“Nós não temos tradição na área. Alguns países saíram na frente e já têm 50 anos de experiência. Aqui a gente ainda não tem essa cultura. Em geral, consumimos só o que vem de fora e gamer brasileiro não valoriza o produto nacional. Além disso, temos poucas figuras de referência. Por ser uma indústria jovem, a gente acaba perdendo um pouco na qualidade e no acabamento.”, analisa Saulo.

Além dessas dificuldades, Wellington, que entrou recentemente no mercado, percebeu logo de cara o quão saturado ele é. “Todos os dias são lançados diversos jogos pequenos e os clones – jogos inspirados demais em outros jogos famosos. Fica difícil conseguir destaque no meio desse mar de opções”, explica.

Apesar disso, quase toda semana, Wellington se depara com uma ideia de sucesso nascida no Brasil, mas não vê grandes estúdios se estabelecendo com tanta frequência. “Quando só se tem mercado para o indie, acabamos por gerar profissionais generalistas que não conseguiriam espaço em estúdios maiores e que exigem pessoas mais especializadas”, observa Wellington.

Ao contrário do que se pensa, o setor de jogos alternativos não compete com as empresas hegemônicas. Saulo explica que elas atuam em áreas diferentes e têm públicos-alvo diferentes.  “A gente não concorre diretamente no mesmo mercado. Não é porque existe um jogo triple A que vai lançar agora, que meu jogo indie vai deixar de vender. Nós ainda não falamos com o mesmo público”, explica.

“Naturalmente, nos afastamos das grandes empresas. Queremos estar em estúdios menores para dar voz às nossas próprias criações. Ao contrário disso, as grandes corporações automatizam o processo e criam jogos sem alma. Então, não é como se a gente estivesse resistindo à alguma pressão do mercado”, argumenta.

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