Cultura
Deitado numa cama de pregos
Silki, o maior – e talvez o único – faquir do Brasil, fez do jejum um meio de vida. Agora sua história virou um livro


A fome não existe”, declarou o jejuador a um tradicional jornal carioca. “O que há é vontade de comer.” Na mesma semana em que Frank Sinatra cruzava o céu do Rio para cantar para 150 mil pessoas no Maracanã, Silki – pseudônimo de Adelino João da Silva – se enterrava vivo numa praça de São Paulo, sonhando atingir um público ainda maior.
Era início de 1980, e o maior – e talvez o único – faquir do Brasil, anunciava seu último ato de resistência: o autoproclamado Frank Sinatra do faquirismo brasileiro jejuaria durante 115 dias dentro de uma urna de vidro, ladeado por cobras, pregos e olhares desconfiados. “Espero ser visto por um milhão de paulistanos!”, avisou à imprensa, numa frase que soava tanto a bravata quanto a apelo.
A escolha do lugar para a despedida, o Largo do Paiçandu, não foi aleatório. Epicentro simbólico do centro paulistano, o largo sempre foi um reduto de artistas de rua, ciganos, missionários e andarilhos.
Sem patrocínio, sem aplausos garantidos e sem a glória de faquires internacionais, Silki tinha, como principal poder de atração, um arriscado flerte com os extremos. “O que acontece comigo não pode ser comparado com a carreira de um atleta de futebol, por exemplo”, lamentava. “Esse dá um coice na bola e já vira astro.”
Mas Silki não buscava fama. Sua missão era outra: mostrar que a dor pode ser domada, o corpo dominado e a vontade controlada. Dentro da urna, jejuando à vista de quem passasse, encenava uma renúncia radical, submetendo-se a uma prisão voluntária que, segundo ele, deveria ser vista como “instrutiva-educativa”. “O público não entende isso”, dizia, resignado.
A prova dos 115 dias teve início em 1º de fevereiro de 1980. Em apenas três dias, 3 mil pessoas passaram pelo barracão do jejuador. Como já era costume, uma cama de pregos lhe servia de colchão. No país da fome, o faquir fez do jejum um meio de vida.
Antes de virar espetáculo popular nos centros urbanos do Brasil, o faquirismo cruzou continentes envolto em turbantes, serpentes e estereótipos. Nascido no Oriente, foi fetichizado pela Europa do século XIX como atração exótica. Ao aportar por aqui, ganhou uma versão tropical e carnavalizada.
“Todos diziam que tinham passado pelo Himalaia, aprendido a jejuar com um mestre indiano. Colocavam turbantes, e as mulheres vinham vestidas de odaliscas. Era tudo parte do show”, conta Alberto Camarero, autor de Silki – Um Tratado Sobre a Arte do Faquirismo. Escrito em parceria com Alberto de Oliveira, o livro resgata a trajetória não apenas do mais célebre faquir do País, mas de toda uma cultura marginal onde a resistência física vira ritual e a calçada vira palco de fé, sofrimento e espanto.
No Brasil, o faquirismo ganhou feições próprias. Mais que imitação orientalista, virou fenômeno popular: provas de resistência em praça pública, camas de prego, serpentes reais, crucificações simbólicas. A cama de pregos virou padrão. Quem não usasse era considerado fraco.
“Na Europa, temos registros de atrações semelhantes, mas posteriores às apresentações dos faquires brasileiros”, afirma Alberto de Oliveira. “O que a gente percebe é que o faquirismo cresceu aqui e, de certa forma, influenciou o que se fazia por lá. Nossos faquires viajavam pela América Latina. Tinha uma força que ia além da estética, era algo muito nosso. Era exótico, sim, mas também profundamente nacional. Misturava misticismo, resistência e teatralidade.”
Entre eles, um se destacou: Silki. Nome curto, direto, cortante. Foi ele quem transformou o faquirismo em vocação nacional, com jejum, cobras, sofrimento e uma retórica cívica inusitada: “Estou trazendo para o Brasil o recorde da fome”.
Silki – Um Tratado Sobre a Arte do Faquirismo. Alberto Camarero e Alberto de Oliveira. Editora Desacato (272 págs., 120 reais) – Compre na Amazon
Em 1955, no Rio de Janeiro, ele jejuou cem dias dentro de uma urna de vidro, deitado sobre 660 pregos, cercado de cobras, vigiado por policiais – e visitado por curiosos de toda parte, da gente simples à elite. Ganhou projeção nacional. Foi capa da revista O Cruzeiro e recebeu a visita presidencial de Café Filho.
Dois anos depois, em São Paulo, jejuou 107 dias. Nessa ocasião, a urna foi selada pessoalmente por Ademar de Barros, então prefeito da cidade. Era o Big Brother dos anos 1950, com direito a cobertura diária nos jornais, boletins médicos, fotos com Mazzaropi, Aracy de Almeida e outros artistas badalados da época. “Silki se promovia muito bem”, diz Camarero. “Ele transformou o faquirismo numa profissão.”
Mas tudo tem limite – e, em 1980, Silki dava sinais de que o seu se aproximava. “Chega de fazer jejum. A idade aumenta e a resistência diminui”, declarou, aos 60 anos, ao anunciar sua última prova no coração de São Paulo.
Quarenta e cinco anos depois, a memória do homem que se orgulhava de carregar “o recorde da fome” é revivida com o rigor que uma boa pesquisa exige e a paixão de quem sabe que a história oficial raramente acolhe marginais. Silki – Um Tratado Sobre a Arte do Faquirismo é, além de uma biografia, um mergulho num Brasil subterrâneo, onde dor e arte se confundem e a penitência vira performance.
Vocação. Em 1955, no Rio de Janeiro, Silki jejuou cem dias dentro numa urna de vidro, deitado sobre 660 pregos; ele também era presença constante na tevê; e foi parar na capa da revista O Cruzeiro – Imagem: Acervo Pessoal/Silki
Foram 12 anos de buscas em arquivos públicos, jornais e processos judiciais, além de entrevistas com familiares e pessoas próximas – entre elas, Rose Lopes, nora do faquir, guardiã de seu acervo e autora do epílogo. Um dos achados mais valiosos presentes no livro é um manuscrito em que Silki narra seus primeiros 15 anos de vida e a iniciação no circo. A obra traz ainda imagens raras, cartazes e registros de uma época em que os faquires dividiam espaço com os cantores de rádio e os artistas do teatro de revista.
Fundadores da editora independente Desacato, os autores assumiram a missão de resgatar histórias esquecidas da cultura underground brasileira: faquires e faquiresas, vedetes, travestis e dançarinas exóticas. Outro de seus livros é Suzy King, a Pitonisa da Modernidade, que inspirou o documentário A Senhora que Morreu no Trailer, dirigido por eles mesmos.
Foi também a pesquisa deles que serviu de base para o filme Fakir (2019), dirigido por Helena Ignez. A cineasta, ao lançar o documentário, dizia desejar entender quem faz da fome uma profissão.
No Brasil, o faquirismo foi marcado por provas de resistência em praça pública, camas de prego e serpentes reais
Durante as apresentações de Silki, acontecia de tudo. No episódio mais emblemático de sua carreira – quando bateu o recorde mundial de jejum no Rio, em 1955 –, logo na abertura parecia que tudo daria errado. A vedete Luz del Fuego, musa do naturismo, apareceu com um macacão de pele de cobra, distribuiu folhetos do seu clube de nudismo e soltou gracejos às serpentes do faquir.
Não era raro que as surpresas viessem das cobras. Certa vez, o faquir foi questionado por um repórter sobre seu pseudônimo estrangeiro: “Você pensa, seu Silki, que os faquires hindus usam nomes esquisitos brasileiros?”. Na mesma hora, uma cobra, como numa piada pronta, esticou a língua em sua direção.
Em 1998, perto de completar 79 anos, Silki morreu pobre, como viveu, na cidade de Poá, na Grande São Paulo. Não virou estátua, não foi parar em museu e nem recebeu homenagens oficiais. Mas recebe agora esta biografia que reafirma seu legado incômodo. E potente. •
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Deitado numa cama de pregos’
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