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Decifra-me ou te devoro

Zé Celso ressurge, múltiplo e contraditório, nas páginas de um livro

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No Oficina. O artista em cena, na trilogia de Os Sertões, em que interpretou Antônio Conselheiro – Imagem: Acervo/Teatro Oficina
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José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso do Teatro Oficina, renasceu das cinzas várias vezes. Seja reconstruindo o Oficina depois do incêndio de 1966 ou se reerguendo após sua prisão e exílio nos anos 1970, Zé Celso sempre ressurgiu impávido e combativo.

Morto em um incêndio em seu apartamento há dois anos, o encenador volta a renascer, como fênix, nas páginas do livro O Devorador: Zé Celso, Vida e Arte, que ­reúne mais de 40 ensaios, entrevistas e depoimentos inéditos de pessoas que conviveram ou foram impactadas por sua obra.

O grande trunfo do extenso volume é revelar um Zé Celso múltiplo, sempre se reinventando, e cujas intervenções e preocupações foram muito além do palco, consolidando-o como um grande intérprete do Brasil nas artes.

“O teatro era o centro das atividades dele, mas, a partir daí, avançou e influenciou a música popular, o cinema e a própria arquitetura com o projeto arrojado do Oficina”, conta, em entrevista a ­CartaCapital, o jornalista e pesquisador Claudio Leal, organizador do volume e também autor de alguns dos textos reunidos.

O livro procura iluminar as várias facetas do artista e, em uma narrativa cronológica e temática, mostra como Zé Celso revolucionou o teatro e a forma de pensar o Brasil por meio da crítica política e de uma busca contínua de liberdade artística e corporal.

Não se trata, porém, de um livro-homenagem. Por meio de ensaios teóricos, depoimentos e entrevistas com o próprio Zé Celso, são reveladas as contradições existentes no pensamento do artista, em constante evolução.

“Seria redutor fazer um livro para cultuar sua personalidade, porque ele era muito controverso. O elenco reunido para falar sobre ele resulta em homenagem, mas por meio de uma discussão crítica”, avalia Leal, que procurou preencher lacunas na discussão sobre Zé Celso, como sua experiência no cinema e o exílio na Europa e África de 1974 até 1978.

O escritor Ignácio de Loyola Brandão e o irmão de Zé Celso, João Batista Martinez Corrêa, discorrem sobre a juventude do artista em Araraquara, onde nasceu em 1937. Zé Celso dizia existir culturalmente graças ao suicídio de Getúlio Vargas, em 1954.

O Devorador: Zé Celso, Vida e Arte. Claudio Leal (org.). Edições Sesc (520 págs., 130 reais)

Para ele, o suicídio de Getúlio, que gerou mobilizações populares de apoio ao seu legado, atrasou em dez anos o golpe de Estado, dando assim tempo para o surgimento de movimentos artísticos como a bossa nova, o cinema novo, o tropicalismo, a contracultura e o Teatro Oficina, fundado em 1961.

Os primeiros tempos do Oficina são recuperados em artigo do ator Renato Borghi. Caetano Veloso lembra do impacto provocado pela encenação de O Rei da Vela, em 1967. “Era uma coisa impressionante, porque era tudo o que a gente sonhava em conseguir na música popular”, escreve ele.

Caetano recorda ainda que, no programa do espetáculo, havia referências de Zé Celso a Chacrinha e Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, que ele pensava só estarem na sua cabeça. Leal conta que a montagem de O Rei da Vela foi uma sugestão do ensaísta e professor de teatro Luiz Carlos Maciel, inicialmente rejeitada por Zé, que só aceitou realizá-la por insistência de Borghi.

Escrita em 1933 por Oswald de Andrade e até então nunca encenada, a peça reinaugurou o Oficina em São Paulo e colocou a antropofagia de Oswald – a deglutição das influências externas na criação de uma expressividade brasileira – no centro de sua marca autoral.

Leal também deu protagonismo para as pessoas que, com Zé Celso, ajudaram a construir o Oficina, com depoimentos de profissionais de cena (como as atrizes Miriam Mehler, Ítala Nandi, Marieta Severo e Karina Buhr), da música (José Miguel Wisnik, Gilberto Gil, Tom Zé, Júlio Medaglia, Jorge Mautner e Maria Bethânia), do cinema (Júlio Bressane e Rogério Sganzerla).

Bethânia diz que foi graças ao Oficina e ao Teatro de Arena, de Augusto ­Boal, que entendeu seu desejo cênico. Foi no Oficina que Bethânia conheceu Fauzi Arap, que viria a dirigi-la em vários ­shows a partir de Rosa dos Ventos (1971), um marco da interação entre música e teatro.

A cenografia de O Rei da Vela, de Hélio Eichbauer, e o projeto do novo Oficina de Edson Elito, a partir da concepção de ­Lina Bo Bardi, também são iluminados. Para o organizador, Zé Celso pensava em um teatro integrado à cidade, sem paredes e limites físicos. Seu desejo resultou num espaço com teto retrátil e imensas janelas que permitem a interação com o exterior.

O volume também conta com um generoso caderno de fotografias que ilustram os textos, percorrendo desde a primeira comunhão, em Araraquara, até seu velório, no Oficina. Uma das fotos registra o trabalho de Zé Celso como ator na trilogia de Os Sertões (2002–2007), em que interpretou Antônio Conselheiro.

Para Leal, as duas últimas décadas do encenador, de 2003 a 2023, foram dedicadas ao que ele chamou de “teatro do desmassacre”, focado em traumas formativos do Brasil, como a matança de sertanejos pelo Exército Republicano em Canudos – tema de Os Sertões. Nos últimos anos, Zé Celso estava debruçado sobre A Queda do Céu, texto de não ficção do xamã yanomami Davi Kopenawa.

O organizador acredita que, se concluído, esse projeto, que abordaria o extermínio dos povos originários, daria uma nova dimensão ao retrato dos indígenas no teatro brasileiro. Com sua interrupção, após a morte de Zé Celso, terá sido mesmo Os Sertões, na visão de Leal, “a experiência mais abrangente de seu gesto de solidariedade com povos massacrados”. •

Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Decifra-me ou te devoro’

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