Cultura

De Volta para o Passado

O medo tomou conta de nossa civilização. O mesmo medo que assaltou os ingleses do século XV e que Thomas Morus descreve em sua Utopia

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Um parente de meu vizinho aqui da esquerda recebeu uma visita indesejada numa noite qualquer do mês passado. Dois indivíduos armados pularam-lhe o muro e entraram pela porta da cozinha. Por isso, uma semana depois, ele, o meu vizinho aqui da esquerda, apareceu cá por casa (coisa que não fez durante os anos em que vizinhamos) para se despedir. Ele tinha o olhar apreensivo e irrequieto de quem vê uma ameaça debaixo de cada folha.  Estava de mudança para um condomínio fechado. Soube, também, que aderiu ao teletrabalho: não precisa mais sair de casa nem pra ganhar o pão-nosso-de-cada-dia.

Ontem parou aqui ao lado um destes caminhões que a gente chama de baú, porque carregam nossos móveis e nossos segredos. Logo depois uns nem sei quantos automóveis e congêneres. Foi um movimento de formigueiro. Camas e vasos, caixas de papelão lacradas, sei lá, toda esta bugiganga sem a qual uma casa não fica com a cara dos donos. Poucas horas depois, ouvi batidas das portas do caminhão-baú, para que não nos esqueçamos – de alguns automóveis e congêneres, e a curiosidade me mordeu: fui espiar. Os móveis já haviam sido engolidos pela casa e os segredos jamais nos serão revelados, pois se o forem deixarão de sê-lo.

Voltei para minha cadeira preguiçosa onde um livro me esperava com sisuda paciência. Mal sentei, o susto: dois homens faziam buracos em cima do muro, enfiavam nestes buracos pequenas hastes de ferro que chumbavam lá no alto com cimento. Uma operação rápida, verdadeira blitzkrieg, e aquilo me assustou um pouco. Nem me levantei, para perguntar irritado o que era que faziam ali, quase dentro do meu quintal.

– O patrão mandou eletrificar, respondeu-me o que já vinha trabalhando mais perto.

A resposta, primeiro, me deixou pasmo porque entendi, não sei por que livre associação, “eletrocutar”. E realmente antes que caíssemos todos nós, eu na preguiça e o dia nas sombras, corriam quatro fios que se ligavam às hastes por cima do muro, que estava devidamente eletrocutado. Depois, mercê do que vira, caí novamente, mas desta vez caí do livro em cima de uma reflexão. De queda em queda fui percebendo que o homem não consegue andar em linha reta. Há de fazer sempre seus círculos. Alguns acreditam que a história se desenvolve em círculos; outros acreditam que se desenvolve em espiral, voltando sempre ao mesmo ponto, mas alguns furos acima. Seja como for, percebi que voltáramos à Idade Média.

O medo tomou conta de nossa civilização. O mesmo medo que assaltou os ingleses do século XV e que Thomas Morus descreve em sua Utopia. Depois de criar bandos imensos de miseráveis, a nobreza britânica resolveu enforcá-los porque se tornaram uma ameaça aos seus produtores. Reeve, em sua History of Law, conta que foram enforcados 70.000 nos últimos 14 anos do reinado de Henrique VIII. No Brasil, se tivéssemos de enforcar os ladrões, bem, isso já é outro assunto.

Estou convencido de que a história se desenvolve em espiral. As muralhas dos castelos medievais, hoje, foram transformadas em condomínios fechados ou naqueles quatro fiozinhos que vejo daqui passando por cima do muro aí do lado. E o trabalho em casa, dos mestres artesãos e seus aprendizes, não é mais distribuído por um mercador, mas por outro fio, o telefônico. Alguns furos acima.

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