Cultura
De volta ao começo
Após 50 anos de sua saída do Oficina, Renato Borghi sobe ao palco do Bexiga com uma colagem de textos de Brecht


Nesta sexta-feira 29, quando ocupar o centro do Teatro Oficina para encenar O Que Nos Mantém Vivos?, Renato Borghi não estará apenas iniciando mais uma entre as tantas temporadas que, ao longo da carreira, apresentou em São Paulo. O ator carioca de 86 anos, radicado desde 1955 em São Paulo, estará revivendo um pedaço central de sua história.
Exatos 50 anos atrás, ele dizia adeus a esse mesmo palco, onde ergueu as bases de sua trajetória, e nunca mais voltaria a atuar ali. Mas veio então, em julho passado, a trágica morte do amigo José Celso Martinez Corrêa (1937-2023) e o retorno, até então improvável, tornou-se uma urgência.
“Você não sabe a emoção que está sendo para mim. Estou custando muito a sair desse luto”, diz, emocionado, nesta entrevista a CartaCapital concedida na semana anterior à estreia. “A falta do Zé é como se me faltasse um pedaço.”
Borghi foi um dos fundadores do grupo Teatro Oficina, gestado por ele e Zé Celso quando eram estudantes na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Ao lado de Ítala Nandi, Fauzi Arap (1938-2013), Ronaldo Daniel, Amir Haddad e Etty Fraser (1931-2018), eles iniciaram, em 1958, um movimento amador que, três anos depois, começaria a se profissionalizar.
O marco inaugural dessa fase foi a ocupação de um prédio na Rua Jaceguai, número 520, no bairro do Bexiga, região central da cidade. Adriano Borghi, pai de Renato, foi o fiador do imóvel, antes ocupado pelo Teatro Novos Comediantes, desalojado por falta de pagamento do aluguel.
Foi nesse espaço que, a partir de 1961, o Oficina encenou montagens antológicas como O Rei da Vela (1967), de Oswald de Andrade (1890-1954), Roda Viva (1968), de Chico Buarque, e Galileu Galilei (1968), de Bertolt Brecht (1898-1956).
O dramaturgo alemão, seria, aliás, o grande motor desse momento do grupo. Seus textos fortemente críticos à política e aos costumes se transformaram em tomadas de posição daqueles atores diante do avanço da ditadura, a partir de 1964. É inspirado em Brecht que Borghi retorna para lá.
Em O Que Nos Mantém Vivos?, a dramaturgia de Élcio Nogueira Seixas e a direção de Rogério Tarifa costuram trechos emblemáticos da obra do autor. Ao longo de 200 minutos, e com outros atores no palco, são retomadas cenas de peças como Galileu Galilei, Santa Joana dos Matadouros e A Resistível Ascensão de Arturo Ui. Os textos, combinados, traçam reflexões sobre o obscurantismo diante da razão e exploram a relação entre a religião e o poder, além da ascensão de governos autoritários.
“Não me espanto nem um pouco com a presença e a atualidade de Brecht, porque ele escreveu sobre temas que ainda não foram superados”, diz Borghi.
“A falta do Zé Celso é como se me faltasse um pedaço”, diz o ator, de 86 anos
A peça também dialoga com a trajetória do ator, pois deriva de O Que Mantém Um Homem Vivo?, primeira montagem original do Teatro Vivo, fundado por ele com sua então companheira Ester Góes, logo após a saída do Oficina, em 1973. “O Zé Celso tinha descoberto a força do coro, de interagir com a plateia. Para mim, que era um ator-intérprete de grandes personagens, aquilo tudo era muito estranho”, recorda.
A ruptura artística não significou, de forma alguma, o fim da amizade com Zé, com quem chegou a dividir a morada no início da carreira. Em 2017, os dois voltaram a trabalhar juntos em uma remontagem de O Rei da Vela encenada no Sesc Pinheiros. Borghi retomou o papel de Abelardo I, mas, quando a peça seguiu com temporada no Oficina, Marcelo Drummond, companheiro de Zé Celso, assumiu o papel do protagonista.
A volta do ator à sua antiga casa é, portanto, quase como a busca por um reencontro cênico com o amigo. Afinal de contas, mesmo tendo partido, sua aura ainda domina aquele espaço. “Espero que o Zé me dê forças e me ajude a seguir em frente”, diz ele, que está envolvido em muitos outros projetos para comemorar seus 65 anos de palco.
Só em 2023, ele já circulou pelo Brasil ao lado de Matheus Nachtergaele com Molière e se prepara para retomar as produções de Borghi em Revista e Romeu e Julieta 80, além de encarar novas montagens de A Alegria É a Prova dos Noves, com texto de Oswald de Andrade, e Minha Estrela Dalva, inspirado em sua musa, a cantora Dalva de Oliveira (1917-1972).
“Muitos da geração de Renato Borghi foram para a tevê e o cinema, mas ele ficou no teatro, carregando um amor à cena e toda uma memória de décadas de trabalho. É algo raríssimo de se ver, e o fato de ele se manter ativo cria uma ponte fundamental entre o teatro de hoje e aquele momento tão vibrante e importante para o teatro moderno brasileiro”, aponta o crítico teatral Paulo Bio Toledo, professor de Literatura e Teatro da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
No meio de toda a agenda com o Teatro Promíscuo, grupo mantido por Borghi desde 1993 ao lado de Élcio Nogueira, há espaço para um desejo ainda não vivido: encarnar o papel-título de Rei Lear, de Shakespeare (1564-1616). “Quem sabe?”, sonha.
Mesmo após passar por cirurgias no coração e na coluna, sua agenda continua lotada de apresentações. É como se o palco fosse a resposta à própria pergunta feita pela peça agora em cartaz: o teatro é o que o mantém vivo. Como diria Zé Celso, “Evoé!” •
Publicado na edição n° 1279 de CartaCapital, em 04 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De volta ao começo’
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