Cultura
De que é feito um astro?
Josh O’Connor, o Príncipe Charles de The Crown, revela sua capacidade de transformação em dois filmes em cartaz: Rivais e La Chimera


De que é feita uma estrela de cinema? O ator britânico Josh O’Connor, de 33 anos, mais conhecido, até este mês, como o Príncipe Charles de The Crown, tem refletido sobre essa questão.
No início deste ano, ele terminou um drama ambientado na Primeira Guerra Mundial chamado The History of Sound, com Paul Mescal. “Paul é meu amigo e foi incrível vê-lo trabalhar”, diz O’Connor. “Não exagero ao dizer que ele é brilhante. Paul tem essa qualidade de estrela de cinema, seja lá o que isso for.” Zendaya é outra. O’Connor está ao lado dela em Rivais, a aventura psicossexual sobre tênis de Luca Guadagnino (diretor de Me Chame pelo Seu Nome), em cartaz em vários países – Brasil incluído.
Eles interpretam dois lados de um triângulo amoroso lascivo, com Mike Faist como o terceiro. “Nunca fiz lançamentos como o de Rivais, então é estranho para mim”, diz. “Estou uma pilha de nervos, e Mike também. Nós dois pensamos: ‘Que p* é essa?’. E vejo como ela faz isso com classe e generosidade. Chame do que quiser: química, alquimia, talento, dom para estrela de cinema – Zendaya tem isso.”
E quanto a O’Connor: ele tem potencial para o estrelato? “Não!”, responde ele, com uma risadinha autodepreciativa. “Não estou sendo falsamente humilde. Sou uma pessoa muito ansiosa. Não acho que tenho força suficiente para ser uma estrela de cinema.”
Talvez ele tenha razão. E isso não é, de modo algum, uma crítica. Quando nos encontramos no bar de um hotel no Soho, ele tinha acabado de voltar da turnê promocional de Rivais, que o fez viajar pelo mundo por várias semanas. “Foi exaustivo, confuso e assustador – às vezes, desconcertante”, diz O’Connor, com seus cabelos castanhos despenteados e a barba irregular, recostado sobre a banqueta amarelo-mostarda, enquanto toma um cappuccino.
“Não estou sendo falsamente humilde. Sou uma pessoa muito ansiosa. Não acho que tenho força suficiente para ser uma estrela de cinema”
O ator tem um jeito gentil e solícito. Em casa, suas atividades favoritas são mexer com cerâmica e jardinagem. Impossibilitado de fazer isso no tour, começou a bordar. O’Connor não irradia a vibração típica das estrelas de cinema. E isso também acontece na tela. As estrelas tendem a ser maiores e mais carismáticas que seus personagens, como se exercessem uma atração gravitacional. A grande habilidade de O’Connor é desaparecer nos papéis que interpreta.
Francis Lee, diretor de O Reino de Deus (2017), filme no qual o ator interpretou um peão de fazenda reprimido na Inglaterra, comparou sua capacidade de transformação à de Daniel Day-Lewis. Peter Morgan, criador de The Crown, disse que a chegada de O’Connor à série fez com que se lembrasse de quando trabalhou pela primeira vez com o ainda pouco conhecido Michael Sheen, em The Deal (2003).
A capacidade de transformação de O’Connor nunca foi tão evidente quanto agora. Em Rivais, ele é totalmente convincente como o tenista americano Patrick Zweig – presunçoso, mas não realizado. E ele também está em cartaz com La Chimera, da cineasta italiana Alice Rohrwacher, no qual vive Arthur, o talismã de um bando de saqueadores de túmulos.
Os dois filmes e os papéis não poderiam ser mais contrastantes. Isso também valeu para a experiência de filmá-los. Para Rivais, O’Connor – que não costuma frequentar academias – precisava estar tonificado e musculoso. E, embora sejam usados dublês, devia tornar-se razoavelmente hábil no tênis. Para isso teve aulas diárias, durante um mês, com Brad Gilbert, que treinou André Agassi e Coco Gauff. Guadagnino instalou os atores em coberturas do Hotel Four Seasons, em Boston, para que se recuperassem dos esforços a cada dia.
“Luca, certa vez, me disse que os atores são como cavalos de corrida”, diz O’Connor, sorrindo. “E, para que o seu cavalo esteja na melhor forma, ele precisa ser preparado, cuidado e mantido em um bom estábulo.”
Fama. O ator britânico, de 33 anos, ganhou em 2021 um Globo de Ouro e um Emmy pela série The Crown – Imagem: Netflix
La Chimera, por sua vez, foi filmado na Itália, em duas partes. Entre uma e outra, ele filmou Rivais. Depois de tanto tênis, O’Connor retornou ao set de La Chimera malhado como jamais: “Entrei, tipo, para mim, na forma divina. Nunca estive nessa forma”. Mas isso não fazia sentido algum para Arthur, que acaba de sair da prisão e está arrasado pela morte da namorada. O’Connor adotou uma dieta radical: comia apenas uma lata de atum e uma maçã na refeição principal do dia.
O’Connor quis morar na cabana de seu personagem, numa colina no Lácio, mas Alice não topou: o lugar não tinha um banheiro funcional nem, na verdade, muito telhado ou paredes. Chegou-se a um acordo de que O’Connor ficaria em sua van, um caminhão de entregas reformado que ele chama de Winnie e pintou de amarelo.
Há, definitivamente, uma tendência hippie em O’Connor, que ele atribui à infância. Ele cresceu em Cheltenham, região central da Inglaterra, o segundo de três filhos de John, um professor de inglês, e Emily, parteira. As férias eram passadas acampando na França ou subindo montanhas.
O’Connor, que tem dislexia, foi educado em St. Edward’s Cheltenham, uma escola particular mista onde seu pai lecionava. Ele se destacou em Artes, mas acabou se dedicando à atuação e ganhou uma vaga na escola de teatro Bristol Old Vic. No início da carreira, não teve muitas oportunidades.
Começou com pequenos papéis em Doctor Who e teve sua grande chance em God’s Own Country (2017), filme de estreia de Francis Lee. Ao se preparar para o papel, O’Connor passou semanas trabalhando numa fazenda de ovelhas, onde construiu muros de pedra e ajudou no parto dos animais. Perdeu 10 quilos e, no fim, estava tão desgastado que teve de passar uma semana no hospital tomando soro.
“Isso foi o mais próximo de um método que eu fiz”, diz O’Connor. “Esse filme estará sempre no meu coração, mas exigiu muito de mim. Demorei alguns anos para perceber que não seria capaz de manter esse nível de vida e trabalho profundo por muito tempo – simplesmente não daria certo.”
O papel em God’s Own Country rendeu-lhe o prêmio de melhor ator no British Film Award. Os prêmios – um Globo de Ouro e um Emmy – voltariam às suas mãos em 2021, com The Crown.
No ano passado, O’Connor mudou-se de um apartamento no norte de Londres para uma casa num vilarejo nos arredores de Stroud, em Gloucestershire. Uma das razões era estar perto da família, mas ele queria, principalmente, um jardim maior e um pequeno ateliê de cerâmica.
“Adoro trabalhar, mas também adoro estar no meu jardim, cuidar das plantas e vê-las viver e morrer”, afirma ele
Por causa de Rivais e La Chimera, O’Connor não tem passado muito tempo em casa. Quando pergunto que lições tirou dos últimos meses caóticos, ele responde pela tangente, trazendo à tona um de seus livros favoritos: Cândido, a sátira de Voltaire, do século XVIII, que pretendia destruir o otimismo da época. “Esse é um grande truque de entrevista”, ri, “para dizer: ‘Vamos colocar um pouco de literatura e deixar todo mundo feliz!’”
O’Connor refere-se ao final do livro, quando Cândido e seus companheiros, em viagem à Turquia, encontram um homem idoso sentado sob uma árvore. Impressionados com a simplicidade com que ele vive, perguntam-lhe o segredo de uma vida feliz. “Devemos cultivar o nosso jardim”, ouve.
“Minha leitura dessa conclusão é que a jardinagem é, na essência, um pequeno ato de vida”, diz O’Connor. “Cuidar daquilo, te dá um pouco de alegria – no Reino Unido, tipo dois meses por ano. Aí ele morre e você cuida dele de novo, o aprecia e depois ele morre. É algo repetitivo e inútil, mas que seguimos fazendo.”
O que isso tem a ver com a carreira dele? “Minha resposta aos últimos meses não é: ‘Ah, sim, quero mais’”, explica pacientemente. “Adoro trabalhar, mas também adoro estar no meu jardim, cuidar das plantas e vê-las viver e morrer. Espero que esse contraste me mantenha com os pés no chão.”
Josh O’Connor talvez não seja uma estrela de cinema, mas algo ainda mais especial. Desde que possa ser tirado do seu jardim. •
Publicado na edição n° 1311 de CartaCapital, em 22 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De que é feito um astro?’
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