Cultura

De portas semiabertas

No fim da tarde da quinta-feira 18, sob uma forte chuva, 15 antigos funcionários reuniram-se no saguão da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino, Zona Sul de São Paulo, para serem oficialmente readmitidos. O encontro, discreto, marcou a retomada gradual das atividades na instituição, que, desde […]

Missão. Maria Dora Mourão, agora responsável pela Cinemateca, vai priorizar as ações emergenciais
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No fim da tarde da quinta-feira 18, sob uma forte chuva, 15 antigos funcionários reuniram-se no saguão da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino, Zona Sul de São Paulo, para serem oficialmente readmitidos. O encontro, discreto, marcou a retomada gradual das atividades na instituição, que, desde julho de 2019, estava fechada.

Um dia antes, dois representantes do governo federal haviam comparecido ao prédio de tijolos aparentes e vastos jardins para formalizar o início do contrato emergencial firmado com a Sociedade Amigos da Cinemateca (SAC). “Um dos nossos primeiros objetivos é fazer o diagnóstico da situação. O prédio foi aparentemente conservado, mas as condições do acervo ainda precisam ser avaliadas”, disse, ao receber CartaCapital, Maria Dora Genis Mourão, diretora-executiva da SAC.

Logo no começo da entrevista, um bombeiro entra na sala para checar o extintor. Ao longo da conversa, aparece também, para tirar uma dúvida, o funcionário do governo federal que, nos últimos meses, fez a zeladoria do prédio. Informalmente, ele comenta que chegou a despertar de madrugada para ir até lá conferir se estava tudo em ordem.

O fogo, que atingiu cinco vezes a instituição desde a década de 1950 – a última delas, este ano, na unidade da Vila Leopoldina –, tornou-se a ameaça mais visível a pairar sobre a Cinemateca. Mas quais são, na prática, os principais desafios a enfrentar a partir de agora?

Os mais prementes talvez sejam três: o levantamento das reais condições do acervo e da estrutura do prédio, o salvamento das cópias que tenham entrado em processo de deterioração e a formalização de um contrato de gestão com o governo federal.

O enfrentamento dos dois primeiros desafios está a cargo da diretora da SAC e dos funcionários que voltaram ao trabalho na Vila Clementino. Apesar de serem poucos, perto dos 150 de outras épocas, eles são muito qualificados e se sentem imbuídos de uma missão. Já o rescaldo do incêndio na outra unidade depende da perícia técnica – por ora, ninguém pode tocar em nada que lá está .

O terceiro desafio é de ordem política e burocrática. Cabe lembrar que a própria crise tem origem em desacertos políticos e burocráticos que se arrastam há quase dez anos. A Cinemateca foi fechada devido ao rompimento do contrato da União com a entidade que a geria. Para que volte a funcionar plenamente, um novo contrato deve ser assinado.

A SAC venceu o chamamento público aberto pelo governo para a escolha de uma nova Organização Social (OS) a ser responsável pelo órgão. O edital teve outros dois concorrentes: uma professora do Paraná, desclassificada por ser Pessoa Física, e uma OS de Goiás, da área de educação.

Os 15 funcionários recontratados ainda tentam fazer um diagnóstico do estado do acervo

Ao anunciar o resultado, o governo afirmou, em nota, ter a expectativa de celebrar o contrato em dezembro, quando devem ser repassados 7 milhões para a Cinemateca. A partir de 2022, a previsão é de um orçamento de 14 milhões de reais anuais, a ser complementado por outras receitas – que devem incluir desde a captação de recursos via Lei Federal de Incentivo à Cultura até a exploração comercial do espaço.

Para que o contrato seja firmado é, porém, preciso que Jair Bolsonaro assine um edital que qualifique a SAC como Organização Social – a SAC tinha, até aqui, outra figura jurídica. A partir disso, fica restabelecido o vínculo formal entre a Sociedade Amigos da Cinemateca e a Secretaria do Audiovisual (SAv).

Durante o processo de negociação com o governo, o secretário do Audiovisual era Bruno Côrtes. No início deste mês, ele foi, no entanto, substituído por ­Felipe Pedri, ex-secretário de Comunicação Institucional de Bolsonaro. Na quarta-feira 17, Pedri publicou, no Instagram, uma foto no laboratório da Cinemateca.

No post, escreveu: “O audiovisual é importantíssimo para o imaginário de um povo, para que uma comunidade se reconheça como nação. Acredito que podemos dar um tom diferente para que essa ferramenta poderosa possa servir com mais assertividade às demandas da população”. Mário Frias, secretário Nacional de Cultura, reagiu: “Vamos devolver a Cinemateca ao povo brasileiro”.

Neste momento, a secretaria é representada na Cinemateca por Jéssyca Ferreira, funcionária de carreira do extinto Ministério da Cultura. Caberá também ao governo federal nomear o Conselho Técnico Consultivo da Cinemateca Brasileira.

Enquanto o novo contrato não é assinado, as próprias ações da SAC são limitadas, uma vez que a nova diretoria precisa ser constituída. A despeito disso, e dela seguir fechada para o público, há muito o que fazer. Além de concentrar esforços no cuidado com o acervo e na formalização da OS, Maria Dora tem voltado a atenção aos pedidos acumulados ao longo destes meses.

E há de tudo. Desde gente que precisa de um trecho de um filme antigo para completar um documentário ou para ilustrar um livro até o pedido para a retirada da obra de José Mojica Marins, o Zé do Caixão, que pode ser restaurada graças a recursos recebidos do Reino Unido, mas que ficou, como a própria ­Cinemateca, trancada por um tempão.

“Apesar de, às vezes, acordar de madrugada pensando no que precisa ser feito, me sinto aliviada”, diz a diretora-executiva da SAC. “Na cultura judaica, reaberturas em dias de chuva dão sorte. E em quintas-feiras também. Que seja um sinal”, finaliza, um pouco em tom de brincadeira, um pouco para vocalizar a sua esperança.

CRÉDITOS DA PÁGINA: WANEZZA SOARES E LAURO ESCOREL

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

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