Cultura

Day After

O que pode acontecer no dia seguinte?

'No dia seguinte em que vi Tom Zé cantando São São Paulo, pensei em morar e trabalhar na maior cidade da América do Sul'
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No dia seguinte do golpe militar de 1964, viajamos numa Rural Willys, o meu pai, minha mãe e meus quatro irmãos, de Brasília para Belo Horizonte.

No dia seguinte em que passei no exame de Admissão no Colégio Marista, minha mãe comprou, na Guanabana, uma calça comprida pra mim.

No dia seguinte ao Ato Institucional número 5, escondi no sótão da minha casa, todos os livros de Karl Marx e Friedrich Engels.

No dia seguinte em que descobri o meu primeiro amor, dei a ela de presente o álbum branco dos Beatles.

No dia seguinte em que comprei o primeiro número da revista Realidade, pensei em ser jornalista.

No dia seguinte da morte de Ernesto Che Guevara, eu vi num jornal boliviano a tal fotografia dele morto com os olhos abertos.

No dia seguinte em que vi Tom Zé cantando São São Paulo no Festival da Record, pensei em morar e trabalhar na maior cidade da América do Sul.

No dia seguinte em que levei bomba em Francês no Colégio de Aplicação, prometi, um dia, falar a língua de Roland Barthes, Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

No dia seguinte em que fui confundido com o guerrilheiro Alemão na Praça da Savassi, tomei a decisão de ir-me embora do Brasil e só voltar depois que a ditadura acabasse.

No dia seguinte em que pesquei piabas no Rio das Velhas pela primeira vez, fritei cada uma e comi com angu.

No dia seguinte em que um vizinho envenenou nossos pombos, eu joguei um tijolo na vidraça da casa dele.

No dia seguinte em que passei no vestibular para Jornalismo na UFMG, joguei todas as minhas apostilas de Física, Química e Biologia, na lagoa da Pampulha.

No dia seguinte em que acabei de ler Cem Anos de Solidão, eu me apaixonei por Gabriel Garcia Márquez.

No dia seguinte em que deixei o Brasil, acordei numa pensão barata, num Portugal de Salazar.

No dia seguinte em que cheguei na Gare d’Austerlitz, em Paris, vi neve pela primeira vez.

No dia seguinte em que nasceu o meu primeiro filho, na clínica do Doutor Frédérick Leboyer, voltei pra casa e tomei uma latinha de Kronnebourg.

No dia seguinte em que ouvi Jelly Roll Morton ao piano interpretando Black Bottom Stomp, quis ouvir de novo.

No dia seguinte em que nasceu a minha primeira filha, fiquei encantado como ela era loirinha e do cabelo espetado.

No dia seguinte em que voltei para o Brasil, tomei uma garrafa de guaraná, ainda no aeroporto do Galeão.

No dia seguinte em que cheguei a Cuba, dei de presente a um jovem que insistiu muito, uma camiseta com a estampa da Madonna.

villas botero.png ‘Em Bogotá, vi pela primeira vez a obra de Botero em que Pablo Escobar aparece cravejado de balas’ (Reprodução)No dia seguinte à eleição de Fernando Collor de Mello, pensei: Foi a TV Globo que elegeu esse canalha!

No dia seguinte em que o meu primeiro casamento acabou, acordei de madrugada para cobrir os meus filhos e eles não estavam lá.

No dia seguinte em que a Paulinha se mudou pra minha casa, eu preparei um frango assado com batatas e farofa pra ela e pros meus dois filhos do primeiro casamento.

No dia seguinte em que coloquei o primeiro Jornal Nacional no ar, acordei e fui para a TV Globo para colocar o segundo Jornal Nacional no ar.

No dia seguinte em que minha terceira filha nasceu, o meu filho mais velho disse: Pai, finalmente você tem uma filha brasileira!

No dia seguinte em que meu pai morreu, eu coloquei uma fotografia 3X4 dele num porta retrato, em cima da minha escrivaninha.

No dia seguinte em que vi o filme A Vida é Bela, pensei com os meus botões: Será mesmo que a vida é bela?

No dia seguinte em que minha mãe morreu, peguei uma fotografia 3×4 dela, coloquei num porta retrato ao lado do meu pai.

No dia seguinte em que o meu América foi campeão mineiro, ganhei um coelho de plástico de presente.

No dia seguinte em que minha quarta filha nasceu, lembrei-me de uma cigana que leu a minha mão, em Paris, e disse que eu teria quatro filhos.

No dia seguinte em que Lula ganhou a primeira eleição para presidente da República, comprei as quatro revistas semanais de informação e mandei encadernar.

No dia seguinte em que a minha primeira neta nasceu, me senti um velhinho com 47 anos.

No dia seguinte em que cheguei a São Miguel dos Milagres, em Alagoas, acordei na certeza de que a vida é mesmo bela.

No dia seguinte em que Dilma foi eleita, prometi passar um ano sem tomar cerveja e cumpri.

No dia seguinte em que cheguei a Bogotá, vi pela primeira vez a obra de Botero em que Pablo Escobar aparece cravejado de balas em cima de um telhado.

No dia seguinte em que cheguei a Tóquio, descobri uma loja só de discos brasileiros e lembrei-me do Caetano: A bossa-nova é foda!

No dia seguinte em que deram um golpe em Dilma Rousseff, abri a janela da sala do meu apartamento e gritei: Golpistas filhos da puta!

No dia seguinte em que nasceu o meu segundo neto, eu ouvi Raul Seixas cantando Eu nasci há dez mil anos atrás.

No dia seguinte em que entrevistei o ex-presidente Lula, ouvi a gravação e senti um nó no peito.

No dia seguinte que vi um menino, morador de rua, admirando a vitrine de uma loja de brinquedos na Vila Madalena, eu tive certeza de votar 13.

No dia seguinte às eleições de 28 de outubro de 2018, perdi o sono, acordei no meio da madrugada e escrevi esta crônica pra CartaCapital.

 

 

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