Cultura

David Bowie e as intermitências da Morte

Nas palavras de Zé Celso, Bowie criou um poema da sua própria morte – e, grifo meu, nesse poema decidiu habitar

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Volto a escrever neste espaço três dias após a morte de David Bowie. Ao saber da notícia, prometi que não escreveria a respeito do “camaleão do rock”, justamente para não correr o risco de esbarrar nesta e em outras definições inevitáveis pipocadas nas telas e nas redes desde a manhã de segunda-feira 11. Ademais, havia gente muito mais entendida e habilitada em sua obra para falar de sua vida.

Pois não é sobre ele, nem sobre sua vida nem sua obra, que decidi escrever minha primeira crônica do ano. É sobre a morte. Não da morte dele em si, mas da forma como falamos dela.

Das mensagens postadas à exaustão nos dois últimos dias, dois aspectos fundamentais me chamaram a atenção.

Primeiro, a sensação de desamparo manifestada pela perda de um ícone. Em um mundo carente de referências, a figura de Bowie, tantas vezes reinventada, era a resistência ao rame-rame de nossas vidas ordinárias, cinzas, empacotadas.

Na sexta-feira, quando lançou Blackstar, aquele que, dois dias depois, soubemos ser seu último álbum, um dos comentários que mais li/ouvi foi que Bowie soube envelhecer com o tempo. E se reinventar.

Reinventar-se, no caso, era colocado como sinônimo de permanência, um meio-termo entre o encerramento de uma fase anterior e a projeção de uma onipresença possível. Um contraponto a isso seria nossa personalidade maior, Roberto Carlos, sempre com o mesmo corte de cabelo, o mesmo terno, as mesmas cores, a mesma entonação, a mesma disposição em deslizar pelo tempo sem precisar mudar em nada.

Outro aspecto das mensagens, postadas em redes ou em veículos de grande circulação, era a evocação do “eu” para falar “dele”. “Eu descobri Bowie em 19(…)”, “Eu mudei para sempre”, “Eu fui impactado(a)”, “Eu sinto como se tivesse perdido um amigo”, “Eu vou ser eternamente grato(a)”, “Eu estou desolado(a)”, “Eu perdi meu maior ídolo”. Paul McCartney chegou a postar algo como “eu ttive a honra de tocar com ele”.

Em meio à profusão de análises e relatos em primeira pessoa, uma chamada de caderno de cultura se destacava: “Bowie conseguiu acabar com MEU desconforto existencial”.

Publicadas aos montes, as pequenas grandes histórias pessoais dos fãs, e fico nesta definição sem qualquer intenção de deboche, são justas, compreensíveis. Tocantes até. Pois os que leem, diria Fernando Pessoa, na dor lida sentem bem.

Bowie, mais do que um ícone da música, era um ícone das possibilidades. E, quando falamos em possibilidades, falamos em comportamento, e seu consequente encorajamento para assumir o que se é sem medo de quebrar paradigmas. O impacto sonoro e visual de uma obra foi, por diversas vezes, o empurrão necessário para o entendimento de nossa própria identidade.

Aqui reside uma possível explicação sobre o desamparo e a gratidão manifestados nas mensagens que ele já não poderia ler (ou pode, esteja lá onde estiver). Mas não deixa de ser simbólica a forma como os vivos resolvem falar da morte. É como se, ao transformar o narrador em objeto, estes se lembrassem de que seguem vivos – ou, mais que isso, referendassem um sentido para a existência sem necessariamente uma quebra de vínculo.

Toda semana vemos nas redes sociais alguém chorar, ou manifestar o pesar, por alguém que se vai, seja esse alguém anônimo, reconhecido ou insuficientemente reconhecido, como ressaltavam os órfãos recentes de Júpiter Maça, a quem boa parte dos colegas não prestara o devido tributo.

No jornalismo, a morte de uma personalidade é o gancho para os vivos se lembrarem de suas performances: Eu o entrevistei, Eu o tirei do ostracismo, Eu acompanhei sua trajetória, Eu vi todos os shows, Eu li todos os seus livros, Eu vivi, enfim.

Com Bowie, porém, algo diferente aconteceu. Num dia, saudávamos sua boa forma num álbum aclamado já em seu nascimento; no outro, lamentávamos a sua morte. Entre um ato e outro, soubemos depois, Bowie flertou com a morte em cada linha de sua derradeira performance.

Era como se, entre tantas facetas encarnadas em sua vida, o Bowie morto, ou a caminho da morte, com uma faixa de múmia cobrindo o rosto e dois botões negros como olhos caídos, fosse apenas mais um personagem.

“Alguma coisa aconteceu no dia em que ele morreu. O espírito subiu um metro e afastou-se”, cantou ele em Blackstar, música homônima de seu último álbum, que tinha uma estrela na capa e não o seu rosto.

Com lupas, fãs e especialistas passaram a cavar todos os sinais deixados por quem já sabia do fim iminente e o que encontraram não foi exatamente um exercício mórbido ou simplesmente sombrio, como pede o figurino oficial, sisudo e ocupado em arrependimento, unções e contrições. Encontraram um artista em estado de transcendência pelo encontro da morte cantada com a morte, por assim dizer, vivida.

Em uma de suas últimas cartas ao seu irmão Theo, Van Gogh, que morreu em um campo de trigo e cipreste tantas vezes retratados por ele como labaredas, escreveu: “Nos meus quadros gostaria de dizer algo que console tanto quanto a música”.

Pois nas músicas, e nos clipes das músicas recém-lançadas, a morte de Bowie surge como um ritual festivo. No clipe de Blackstar, ele chega a brincar com seu próprio medo. Os atores figurantes tremem. O astronauta encontrado por uma mulher de feição humana e cauda de bicho é um esqueleto.

Em Lazarus, uma referência ao personagem bíblico morto e ressuscitado por Cristo, a metalinguagem é um exercício de inversão. Bowie/Lazaro não é chamado de volta ao mundo, mas renascido para fora dele. “Venha até nós, Lazaro. É hora de você partir”.

Tudo leva a crer que, ao saber da própria morte, Bowie decidiu cantar e dançar como quem oferece a ela um abraço – como o seu personagem de Furyo, que mastiga flores diante do carrasco. Ele “lutava contra o câncer”, escrevemos quando noticiamos o diagnóstico – sem nos dar conta de que não somos solidários no câncer quando incorporamos à linguagem médica a essência de uma guerra. Nessa linguagem chula há os vencedores (os vivos) e os derrotados (os mortos).

Em seu ato final, Bowie e sua figura andrógina, quase inclassificável, parecem ter driblado todos os requisitos da predisposição ao luto. Nada parecia mais intrigante do que seu último ensaio de fotografia, na qual ele aparece de terno, gravata, chapéu e…sorrindo!

Esse sorriso fora de hora soa como um ruído do medo impronunciável da morte que evitamos a todo custo. Não havia nele aquela espécie de “vergonha ao morrer” comum aos simples mortais, ocupados por tormentas sobre o tempo mal gasto, reconciliações adiadas, obras por terminar (ou iniciar), missões a cumprir. Dessa mortalidade Bowie parecia livre há muito tempo.

No livro O mal-estar na civilização, Freud descreve as três fontes de sofrimento humano: a prepotência da natureza, a fragilidade do nosso corpo, e a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade.

Segundo ele, nunca dominaremos completamente a natureza, e nosso organismo, ele mesmo parte da natureza, será sempre uma construção transitória, limitada em adequação e desempenho. Daí a necessidade em controlar os dois primeiros fenômenos e se abrigar em um ideal de comunidade – a civilização, regrada, ordenada e fonte também de outras angústias.

“Os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte, o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo”, escreveu o pai da psicanálise.

Bowie, que balançou todas as estruturas das convenções sufocantes entre indivíduo e sociedade, deixou, em seu último ato, uma piscadela para um outro caminho possível. Tanto falou de Marte e outros espaços que parecia não temer as tormentas de um recurso humano finito: a vida na Terra. Nas palavras de José Celso Matinez Correa, Bowie criou um poema da sua própria morte – e, grifo meu, nesse poema decidiu habitar. 

 

Ilustração: José Américo Gobbo

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