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Dançar quem somos

A estreia de Nosso Baile no Teatro Chaillot remonta a uma história de três décadas os artistas brasileiros e a França

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Referências urbanas. No espetáculo, 15 dançarinos de diferentes regiões periféricas do Brasil movimentam-se ao ritmo de brega, funk, guitarrada e pop – Imagem: AUTUMN
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Uma explosão de cores e sons toma o palco onde 15 bailarinos de diferentes partes do Brasil dançam suas próprias histórias e estéticas. À frente deles, na penumbra, a plateia reage sorrindo e balançando a cabeça ao ritmo de brega, funk, guitarrada e pop.

Com casa cheia e receptividade calorosa, Nosso Baile, coprodução da Bienal Internacional de Dança do Ceará com o Chaillot, principal teatro de dança de Paris, estreou no último dia 24. A casa localizada na esplanada do Trocadéro, com vista para a Torre Eiffel, reforça o peso simbólico da presença brasileira e sinaliza: nossa dança está em alta.

“Há uma diversidade gigantesca no Brasil. Precisamos do engajamento e da liberdade que ele traz”, diz Rachid ­Ouramdane, diretor de Chaillot. Há mais de 20 anos, o coreógrafo é figura tarimbada na Bienal do Ceará, onde apresenta suas criações. “Lá descubro muitos artistas que trabalham sobre questões do mundo contemporâneo e abraçam a dança e o corpo de maneira generosa e reivindicativa”, diz.

Não é de hoje que a França reconhece a dança brasileira. Um marco propulsor desse flerte foi a edição de 1996 da Bienal de Dança de Lyon. Com uma programação dedicada ao Brasil, o evento catapultou a carreira internacional de companhias como o Grupo Corpo, Deborah Colker e Lia Rodrigues, transformados em referências do País no exterior.

“Naquela época já havia uma mudança de foco para dar voz a outras topologias que não a do homem branco, anglo-saxão e protestante”, explica a professora Cássia Navas, do Instituto de Artes da Unicamp, que pesquisou aquela edição da Bienal em seu doutorado. “Eles colocaram no mesmo patamar a dança supercontemporânea e a da escola de samba. Essa cesta pós-moderna funcionou e teve apelo midiático.”

A relação da França com a dança brasileira manteve-se pelas décadas seguintes, mas sofreu um baque por conta de rompimentos institucionais provocados pelo governo Bolsonaro no campo da cultura. O momento é de retomada das conexões, impulsionadas pela Temporada Brasil­­–França, que celebra os 200 anos de relações bilaterais entre os países, como ressalta Anne Louyot, diplomata francesa à frente da programação cruzada.

“Apostamos em projetos que não buscam apenas entusiasmar o público, mas também tecer relações de longo prazo entre os profissionais da cultura dos dois países”, diz ela. Nosso Baile enquadra-se nesta lista. A expectativa é de que a vitrine do Chaillot proporcione novas oportunidades de financiamento e circulação.

Na mesma semana que o espetáculo estreou, Paris viu sessões do Balé da Cidade de São Paulo e da mais nova obra de Lia Rodrigues, que há décadas tem suas criações 100% custeadas pela comunidade europeia. Com estreia marcada para o fim de outubro no Brasil, Borda abriu, no mês passado, a Bienal de Lyon.

É que, quase 30 anos depois daquele primeiro grande encontro, este que é um dos principais eventos de dança do mundo voltou a fechar o foco sobre o ­País, incluindo na programação oito companhias brasileiras.

A ideia era revelar uma seleção para além dos nomes que “toda a gente apresenta”, como explica o português Tiago Guedes, diretor-artístico desta 21ª edição. “Quis alargar o ponto de vista programático com artistas que ainda não tinham sido mostrados em França”, afirma.

Com apoio da Fundação Nacional de Artes (Funarte), a curadoria incluiu artistas brasileiros baseados na Europa, como o catarinense Volmir Cordeiro e o pernambucano Calixto Neto, e projetos em espaços públicos e alternativos, como a performance Bosque, da cearense Clarice Lima, rea­lizada com a participação da comunidade­ de Lyon, em diversas praças da cidade.

“Apesar de as propostas serem esteticamente bastante diferentes, todas têm um veio político no que diz respeito ao posicionamento dos corpos em cena e estão ancoradas numa atualidade contestatória, sempre com uma visão muito baseada no presente”, afirma Guedes.

A Bienal de Lyon, em 1997, foi um marco dessa relação que, sob Bolsonaro, sofreu um baque e que agora ganha um novo fôlego

As obras respondem também a um mundo diferente daquele do fim do século XX. “O que mudou de lá para cá? A França está mais preta do que jamais esteve”, pontua Cássia, referindo-se à intensificação da imigração, em especial de pessoas oriundas de ex-colônias do país.

Soma-se a esse contexto a demanda por espaço para representações artísticas não eurocêntricas, vindas de lugares como Síria, Palestina e África. “Esse furo brasileiro é importantíssimo e, no caso da Bienal do Ceará, é fruto de uma construção contínua”, completa a professora.

Desde a primeira edição, em 1997, o evento cearense conta com artistas franceses na programação. As trocas resultantes do contato proporcionaram um amadurecimento da cena local. “A dança que a gente tem hoje do Ceará buscou aí elementos para ela própria se criar”, afirma David Linhares, diretor da Bienal. Agora é a vez da França receber o que foi plantado.

Montado originalmente para o Balé da Cidade de São Paulo, Nosso Baile passou por uma recriação do coreógrafo Henrique Rodovalho com um elenco de formação multifacetada e um olhar para as danças urbanas.

A coreografia espelha as referências de movimento dos bailarinos, boa parte de negros e enraizados em regiões periféricas do Brasil. As próximas sessões serão na Bienal do Ceará, que começa em 24 de outubro.

“Vivemos um mundo tenso, com guerras. Mas existe espaço para a libertação”, retoma Rachid Ouramdane. “Por isso é importante um espetáculo que dá lugar a diferentes correntes de contraculturas, algumas vindas de estéticas queer. O que sentimos aqui foi um transbordamento. Esses bailarinos dançam quem eles são.” •


*A jornalista viajou a convite da Bienal Internacional de Dança do Ceará.

Publicado na edição n° 1382 de CartaCapital, em 08 de outubro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Dançar quem somos’

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