Cultura

Da Mulher Maravilha a Donald Trump, os EUA em primeiro lugar

Seja no duelo contra a Doutora Veneno ou na luta contra imigrantes, a mensagem que querem nos passar é a mesma: cabe aos americanos salvar o mundo

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Recentemente, uma nova marca de Hollywood animou os noticiários: “Mulher Maravilha”, de Patty Jenkins, ultrapassou os 650 milhões de dólares e tornou-se, assim, o primeiro longa-metragem ficcional dirigido por uma mulher a alcançar o patamar.

Muito embora os recordes pareçam ajustar-se, em um primeiro momento, às crescentes e indispensáveis demandas por maior representatividade de mulheres na esfera pública, a sua ocorrência em meio ao governo Trump nos obriga a dar um passo atrás: quando a esperança progressista vem de Hollywood, algum nível de desconfiança deve ser levantado.

No segundo semestre de 2016, divulgou-se na imprensa local – dentre eles, a Hollywood Reporter – que, anualmente, os estados norte-americanos direcionam 1,5 bilhão de dólares, em forma de subsídios e isenção de impostos, aos grandes conglomerados de entretenimento. Embora não seja nenhuma novidade, a primeira conclusão possível é bastante elementar: cinema é política de governo – não (apenas) como direito inalienável à cultura, mas, principalmente, como instrumento de propaganda.

Se, em 1944, Adorno e Horkheimer, na célebre Dialética do Esclarecimento, já afirmavam que o Pato Donald, produto clássico do entretenimento ianque,  recebe “as suas porradas nos cartoons para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem”, a lógica da emancipação das minorias sociais nos coloca questão parecida: como entender, no caso da “Mulher Maravilha”, a suposta posição da mulher como dotada de ação transformada?

Estaríamos diante de um incentivo positivo ao empoderamento ou, pelo contrário, de uma possibilidade emancipatória cuja concretização não ultrapassa a fantasia cinematográfica? Foi dado um passo importante em direção à universalização dos direitos (reais e simbólicos) ou projetar a resistência no cinema é estratégia para anestesiá-la fora dele?

Apesar de não se pretender, aqui, uma resposta para o conjunto das perguntas – apenas um incentivo para a sua reflexão -, não deixa de ser curioso notar que as manchetes do recorde de Patty Jenkins dividem as atenções da mídia com outro importante acontecimento desta segunda-feira: a  Suprema Corte dos Estados Unidos restabeleceu o decreto migratório feito por Donald Trump, por meio do qual torna-se proibida por 90 dias a entrada de viajantes de seis países (Líbia, Irã, Somália, Sudão, Síria e Iêmen), majoritariamente muçulmanos, no país.

De aparência e qualidade tão distintas, as notícias se assemelham ao menos em um ponto: os desafios cada vez mais prementes de se lidar com a alteridade e a tendência norte-americana de simplificá-los. Seja no embate do presidente norte americano contra os imigrantes, ou na luta da Mulher Maravilha contra a Doutora Veneno, reforça-se apenas a dicotomia entre o bem e o mal, a ideia do outro como ameaça e a suposta responsabilidade norte-americana em salvar o universo.

Arrisco a dizer, assim, que se o filme de Jenkins cumpre algum papel na discussão do feminismo deve-se muito mais aos seus fracassos (simbólicos) do que às suas qualidades (industriais): não à toa, mesmo propagandeando-se como exaltação feminista, o longa decepcionou muitos grupos simpáticos à causa das mulheres ao insistir na sexualização da protagonista, colocando, além disso, Zeus, um deus masculino, como aquele que autonomizou a guerreira.  

Paradoxalmente, porém, é justamente nesse ponto que se reconhece a vitória: o simples fato de ser colocada alguma luz sobre esses detalhes (que tão facilmente poderiam ser negligenciados no confronto com uma poderosa máquina publicitária), demostra os pequenos avanços da sociedade em meio às trevas geopolíticas.  Será, assim, não tanto pelo filme, mas pelo debate gerado a partir dele – e, de certo modo, contrário a ele -, que torna-se cada vez mais evidente (e salutar) a relação de vigilância que parte da sociedade estabelece com os produtos culturais que lhe são entregues.

Encoberto, portanto, muito mais em um discurso de reforço das estruturas do que de contravenção, o que está em jogo no filme não são tanto as relações de gênero; a obra, inclusive, passa longe de realmente problematizá-las. Mesmo porque, se de fato o filme fosse efetivo em incomodar o machismo atávico, suas cifras milionárias certamente estariam ameaçadas por um motivo óbvio: por definição, resistência política é ação de minoria contra discurso hegemônico. Do contrário, não faz sentido. Resistência incomoda e raramente se reverte em dinheiro. Se o faz, há algo por trás.

O que vemos em questão, de fato – e mais uma vez -, é a lógica do indivíduo norte-americano, representado desta vez por uma mulher, como detentor de poderes e deveres extraordinários quando o assunto é proteger o mundo de supostos invasores. Nesse sentido, convenhamos, a heroína não decepciona: pois, para além de ser uma mulher, Amazona de nascimento, a Mulher Maravilha é, isso sim, uma autêntica norte-americana.

*Felipe Poroger é diretor do filme “Aqueles Anos em Dezembro” e responsável pelo Festival de Finos Filmes, mostra paulistana de curtas

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