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Da estética do frio às milongas

O pesquisador Marcos Lacerda desvenda, em um longo ensaio, o universo labiríntico do artista gaúcho Vitor Ramil

Da estética do frio às milongas
Da estética do frio às milongas
Discos, shows e livros. Ramil lançou o primeiro álbum em 1984, aos 18 anos – Imagem: Marcelo Soares
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E muito difícil encaixar a obra do compositor, letrista, cantor e escritor Vitor Ramil numa cena musical ou em um movimento artístico, tamanha a sua amplitude. O pesquisador Marcos Lacerda mergulhou nesse universo singular e produziu um ensaio vigoroso: Vitor Ramil, o Astronauta Lírico.

O livro é um justo e minucioso trabalho centrado nos discos, shows e livros desse artista com mais de 40 anos de carreira.

Tudo em sua trajetória parece bem estudado e conceituado. Nascido em Pelotas, no Rio Grande do Sul, Ramil vem de uma família de músicos. Seus irmãos são Kleiton e Kledir, da dupla que leva esse nome. Seus álbuns literomusicais são densos; suas apresentações, teatrais; e seus livros têm personagens complexos.

Marcos Lacerda, sociólogo de formação, autor também de Hotel Universo: A Poética de Ronaldo Bastos (Azougue­ Editorial, 2019), sobre outro nome ­bastante único na música brasileira, procura, em O Astronauta Lírico, compreender em que diapasão a obra de ­Ramil vibra.

E ele chega à conclusão de que o artista está mais perto das experimentações da Vanguarda Paulista de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e Grupo Rumo – ao menos no “espírito”, no dizer do próprio músico – do que de representantes da sua geração neotropicalista, como Chico César e Lenine, com quem chegou a fazer parcerias.

Vitor Ramil, o Astronauta Lírico. Marcos Lacerda. (330 págs., 89,90 reais) – Compre na Amazon

Em seu primeiro disco, Estrela, Estrela (1981), gravado aos 18 anos, Vitor Ramil já se apresentava sólido, em versos como Estrela, estrela/ Como ser assim/ Tão só, tão só/ E nunca sofrer, e em nada disposto a fazer concessões à sedenta indústria fonográfica – algo raro para artistas em início de carreira.

O segundo álbum, A Paixão de V Segundo Ele Próprio (1984), Marcos Lacerda enxerga como um dos grandes momentos musicais de Ramil. O autor cita a profundidade na experimentação e o trabalho com formas inusitadas, apontando-o como um dos “álbuns mais inventivos” da canção brasileira.

O ensaio debruça-se ainda sobre o que seria uma marca da discografia do gaúcho: a prática de musicar ­poemas. Recentemente, ele lançou o disco ­Avenida Angélica (2022), no qual ­trabalhou sobre poemas da gaúcha Angélica­ Freitas.

Na década passada, no álbum ­Délibáb (2010), compôs 12 canções para poemas do argentino Jorge Luis Borges­ ­(1899-1986) e do brasileiro João da Cunha Vargas (1900-1980). Délibáb significa, em húngaro, “ilusão do Sul”. A questão do Sul, cabe lembrar, é constitutiva de seu próprio posicionamento no campo cultural.

No encarte do disco Ramilonga – A Estética do Frio (1997), ele escreveu um texto, em tom de manifesto, sobre a milonga – gênero musical da região platina, e sua referência, como pontua Marcos Lacerda.

O compositor morou em Porto Alegre e no Rio de Janeiro nos anos 1980 e, no início da década de 1990, retornou a Pelotas, onde está até hoje. Ele vivia no Rio quando, assistindo ao Jornal Nacional, se sentiu descolado do País. O noticiário televisivo tratava com naturalidade um carnaval fora de época (junho) no Nordeste e reputava exótico o inverno do Sul.

No manifesto Estética do Frio, o autor, de forma engenhosa e sem conflitos, como diz Lacerda, busca dar centralidade à cultura do Sul, em confluência com a Argentina e o Uruguai – países com os quais o Rio Grande do Sul e ele próprio mantêm estreitas relações.

O livro revela um compostitor perfeccionista, em constante recriação, e em permanente tensão com o establishment

Ramil, como mostra o livro, tem ainda proximidade com a poesia concreta dos irmãos Augusto e Haroldo de Campos (1929-2003), extremante imagética. O expressionismo literário de Augusto dos Anjos (1884-1914) também exerce influência importante em sua obra – de canções a livros.

Seus três romances de ficção – Pequod (1995), Satolep (2008), um palíndromo de Pelotas, e A Primavera da Pontuação (2014) – são engenhosos e intrincados.

O livro Vitor Ramil, o Astronauta ­Lírico, que mistura reflexão analítica, crítica cultural, pesquisa em periódicos e conversa com o próprio personagem, revela um artista perfeccionista, em constante retrabalho, e dotado de espantosa criatividade. Trata-se ainda de alguém em permanente tensão com o establishment.

Mais do que a estética do frio, o cantor e compositor parece querer mesmo o “implosivismo”, manifesto pessoal no qual diz basear sua criação: um experimento necessariamente de vanguarda, baseado na ideia de implosão e recriação, de desmonte e novo pensar.

Se Vitor Ramil carrega em si muito da essência do que é ser artista, Lacerda consegue, neste trabalho, adentrar os “enigmas, labirintos, emaranhados” dessa criação. •

Publicado na edição n° 1321 de CartaCapital, em 31 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Da estética do frio às milongas’

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