Cultura

Criado na periferia do Recife, Amaro Freitas inova o som do piano

“Quantas roupas eu não vesti do filho do patrão da minha vizinha, que era doméstica”, diz Amaro Freitas

O pianista Amaro Freitas. Foto: Helder Tavares/Divulgação
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O pianista pernambucano Amaro Freitas surpreendeu ao apresentar um trabalho renovador ao som do piano quando lançou Sangue Negro há quatro anos. Dali em diante passaram a apresentá-lo como instrumentista com um “novo jazz”. Veio o trabalho Rasif em 2018 e a confirmação de um projeto bastante sólido e diferenciado, que chamou a atenção também no exterior, levando a tocar nos tradicionais locais de música instrumental na Europa e EUA.

Amaro Freitas se orgulha de não ter realizado o movimento habitual de ir para o Sudeste, como a maioria dos artistas quando desponta. Ele segue em sua terra onde viveu imensos percalços até ganhar reconhecimento. O pianista veio de uma família humilde, da periferia do Recife. Com a mãe dona de casa, o pai fazia de tudo um pouco para sustentar a casa. “Meus pais são evangélicos da Assembleia de Deus. Tive criação nessa igreja. Essa foi uma escapatória daquele ambiente”, conta. 

 

Na igreja, seu pai montou um grupo musical, embora ele já participasse de outras bandas da instituição religiosa. Passou a tocar bateria eletrônica nesse grupo e teclado de 5 oitavas, mas acabou ficando só com o teclado por que outros colegas queriam tocar bateria na banda. “Daí comecei a estudar o teclado com o meu pai dentro do conhecimento mínimo que ele tinha do instrumento”, lembra. 

Depois, perto onde morava, Amaro conheceu um barbeiro com mais técnica de música do que seu genitor. “Enquanto ele cortava o cabelo das pessoas, ele me ensinava música. Eu ainda ficava com um caderno anotando as informações dentro do salão”.

O instrumentista diz nunca ter passado necessidade pelo simples hábito de moradores da mesma comunidade se ajudarem quando um precisa de algo. “Mas quantas roupas eu não vesti do filho do patrão da minha vizinha que era empregada doméstica. Ele usava a roupa um mês, não gostava e essa roupa vinha para mim”. 

Como músico de igreja, Amaro Freitas foi se aperfeiçoando com instrumentistas mais rodados. Com 15 anos, passou para o Conservatório de Música de Pernambuco, mas, sem condições de pagar, desistiu rapidamente.

“A partir daí tive consciência que precisava trabalhar para realizar meus sonhos na música. E tinha que ficar focado. A realidade triste da periferia é que você não pode errar. Vim de uma família que fez tudo por mim, mas existe um limite e agora era comigo”. Para levantar dinheiro, o músico então passou a vender pão na rua, foi trabalhar com telemarketing. 

Descoberta com Chick Corea

A grande descoberta do que Amaro Freitas queria fazer veio depois que ele ganhou um DVD composto pelo trio Chick Corea (pianista), Dave Weckl (baterista) e John Patitucci (baixista). Depois de ouvi-lo, o trabalho se tornou seu divisor de águas. “Foi um choque. Pude observar que tinha outra possibilidade de música, totalmente diferente da música religiosa. A harmonia, a polifonia, a improvisação. Como pode a música levar a tantos caminhos”.

Decidiu então viver de música instrumental e saiu a luta. Com o dinheiro que juntou, optou em fazer a faculdade de produção fonográfica ao invés de curso de teoria e técnica de música para poder pensar mais na gestão da carreira. E de bar em bar foi desenvolvendo sua linguagem. 

“Mas eu estava entrando em ‘piração’ porque não conhecia a tradição da música nordestina. Na medida que começo a compor, já pensando no primeiro disco instrumental, o jazz era uma coisa natural por que tinha contato e ouvia muito. Só depois que descobri a tradição de meu Estado. Aí quando vou compor um frevo, um maracatu, um baião, ele acaba saindo com essa estética jazzística”.

O instrumentista conta que a igreja o influenciou a forma de expor seu trabalho: “Essa música gospel muito representada na periferia, da onde eu vim, é adoração como lamento e desabafo. Quando as pessoas cantam não é entretenimento. Elas estão buscando conexão tanto com outras pessoas, com o divino. No jazz eu faço o mesmo. Busco essa conexão. Quero celebrar com as pessoas a música. A igreja me ajudou nisso”.

O primeiro álbum Sangue Negro foi para o músico uma prova de que era possível, apesar de ser um “cara do Nordeste, da periferia, negro, no piano”. Foram incontáveis às vezes em que foi confundido como percussionista: “Percebi um monte de preconceito”.

Desde o primeiro álbum o trabalho do pianista Amaro Freitas é realizado em formato de trio tradicional de jazz e mesma formação de instrumentistas, com baixo (executado por Jean Elton) e bateria (Hugo Medeiros). 

Amaro Freitas diz estar hoje preocupado com a pandemia de coronavírus nas periferias e tem tentado ajudar com doação. Um dos desafios, segundo ele, é as pessoas tirarem ou regularizarem o CPF para receberem o auxílio emergencial do governo federal: “Eles precisam dessa verba”. Ele acrescenta que irá participar de um projeto para auxiliar moradores de rua. “Esse momento traz um diferente ser humano que a gente pode ser alinhado com outras coisas em relação à nossa evolução”, finaliza.

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