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Corpos em sincronicidade

O encontro entre o Grupo Corpo e a Osesp, na Sala São Paulo, pôs à prova a excelência de dois dos grupos artísticos mais relevantes do País

Corpos em sincronicidade
Corpos em sincronicidade
Palco compartido. Os ingressos para as três apresentaões de Dança Sinfônica e Estancia esgotaram em 24 horas – Imagem: Iris Zanetti
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Ao longo de quatro décadas, o Grupo Corpo, referência da dança brasileira e internacional, nunca se permitira a ousadia de pensar em apresentar-se com uma orquestra ao vivo. Quem plantou essa semente na cabeça dos criadores da companhia foi o violinista e regente venezuelano Gustavo Dudamel, diretor musical da Orquestra Filarmônica de Los ­Angeles, nos Estados Unidos.

Mas logo depois de Dudamel ter instigado o Corpo a partilhar com a LA Phill o palco da Walt Disney Concert Hall, sede da orquestra, veio a pandemia. “E aí a gente até esqueceu disso. Mas, quando a pandemia arrefeceu, o Dudamel voltou a nos procurar”, diz, cinco anos depois do primeiro convite, Paulo Pederneiras, diretor artístico do Corpo.

A concretização da ideia que tinha tanto de risco quanto de fascínio acabou por dar-se em outro palco de Los ­Angeles, o Hollywood Bowl, um espaço ao ar livre que comporta 17,5 mil pessoas. Ali, em julho de 2023, o Corpo dançou pela primeira vez com música ao vivo. A obra apresentada foi Estancia, composta em 1941 pelo argentino Alberto Ginastera (1916-1983).

No mês seguinte, de volta ao Brasil, os bailarinos se juntaram aos músicos da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, sob a regência de Fabio ­Mechetti, e, na Sala Minas Gerais, acrescentaram ao programa a Dança Sinfônica, de ­Marco Antônio Guimarães. Essa peça havia sido composta em 2015, para celebrar os 40 anos da companhia, e fora então gravada pela filarmônica mineira, com a participação do grupo Uakti.

Acertar o tempo da regência com o dos movimentos ensaiados pelos bailarinos foi um desafio e tanto

“É sempre um desafio dançar sem ser com música gravada, mas, ali, o que aconteceu é que a orquestra seguiu exatamente o seu registro anterior”, relata Pederneiras, como se fizesse um preâmbulo à descrição dos meandros da aventura que foram as apresentações realizadas na capital paulista no último fim de semana.

Pederneiras, que tem 72 anos e fundou o Corpo há 49, com seus irmãos, em BH, conversou com CartaCapital, por telefone, no domingo 5, poucas horas antes da última apresentação que seu grupo faria com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp). Ao fundo, era possível ouvir instrumentos esparsos.

“Foi parecido com Minas”, diz, antes de descrever os detalhes abrigados numa produção artística desse porte e com essas feições. “A única coisa é que, aqui, a gente teve de acertar melhor os tempos com o maestro, principalmente na primeira obra.”

Depois da estrondosa estreia para uma Sala São Paulo lotada, com um público de 1,3 mil pessoas, na sexta-feira 3, o relato dos desafios enfrentados ao longo da semana ressoava, para os envolvidos, quase como um respiro de alívio. O Corpo havia chegado à cidade na segunda-feira e o primeiro ensaio geral, na terça-feira 30 de abril, fez com que certo medo pairasse no ar.

Ousadia. Em quase 50 anos de Grupo Corpo, Paulo Pederneiras (à esq.) nunca tinha ousado subir ao palco com uma orquestra ao vivo. A ideia para a aventura foi dada pelo maestro Dudamel – Imagem: José Luiz Pederneiras e Redes sociais

Descobriu-se, no palco, que, na Dança Sinfônica, os bailarinos estavam em um ritmo e a orquestra em outro. Haveria, a partir dali, três dias para que a interpretação do maestro argentino Dante Santiago Anzolini fosse ajustada aos movimentos marcados com a precisão de um relógio suí­ço pelo coreógrafo Rodrigo Pederneiras.

O desacerto – logo consertado – revela, em suas miudezas, o tamanho da dificuldade de executar-se aquilo que, no palco, se revelou grandioso e surpreendente. “O Rodrigo coreografa a semicolcheia”, diz Paulo, referindo-se a um elemento rítmico que equivale a um tempo brevíssimo.

“Se o movimento ralenta, o bailarino que carrega a bailarina por milésimos de segundo talvez não consiga segurá-la por mais tempo. Ou, se você acelera demais, o bailarino pode perder o fôlego”, prossegue. Depois do primeiro ensaio, em busca do encaixe perfeito, Rodrigo e a ensaiadora Ana Paula Cansado colocaram ­duas cadeiras sobre o palco e sentaram ao lado do maestro.

“A gente ensaia com a trilha gravada pela Filarmônica de Minas Gerais, sempre com o mesmo andamento e com os mesmos instrumentos aparecendo com mais ou menos destaque”, descreve Rafael Bittar, bailarino que está há nove anos na companhia. “O Rodrigo coreografa em cima do tímpano, da tuba, da viola. E é natural que cada maestro ofereça a sua interpretação para a partitura.”

Pouco a pouco, passos e compassos foram se enlaçando. Quando, na estreia, após a execução das Três Danças de Camargo Guarnieri (1907-1993), apenas pela Osesp, surgem no palco os dois primeiros bailarinos, para a Dança Sinfônica de Guimarães, a fluência entre corpos e instrumentos já é total.

“Ao vivo é ao vivo”, diz, de volta a BH, Bittar. “A gente ensaia para não ter nenhuma surpresa, mas, estando com uma orquestra ao vivo, é como se a gente chegasse ao limite do perigo. A presença dos músicos também nos leva a, de repente, fazer um movimento que não tinha sido feito na sala de ensaio – um movimento um pouco mais denso, um gesto.”

Para receber os bailarinos, a Sala São Paulo teve de passar linóleo no chão e providenciar novas réguas de iluminação

Se, para o público em geral, tais sutilezas tendem a passar despercebidas, o mesmo não se pode dizer do espanto diante do fato de ambos os grupos – tão amplos – caberem em um mesmo espaço. “Enquanto um teatro tem, em geral, 13 metros de boca, e uns 9 metros de profundidade, o palco de uma orquestra pode ter 20 metros de extensão e 6 metros de profundidade”, descreve Pederneiras, dando a ver, mais uma vez, os detalhes ocultos.

A Osesp, de saída, teve de pensar em como acomodar, em um mesmo espaço, os ensaios dos dois grupos. Mas havia muito mais. “Tinha as próprias necessidades de estrutura e de adaptação do espaço”, diz Gabriela de Souza, coordenadora de Planejamento e Administração Artística da Osesp.

“Os bailarinos precisam, por exemplo, de linóleo no chão do palco. A gente nunca tinha usado linóleo”, conta. “A iluminação da Sala São Paulo, pensada para concertos, também teve de ser adaptada. Alugamos varas de luz mais baixas.” Enquanto um teatro-padrão tem mais de cem refletores, uma sala de concerto tende a ter metade disso.

Curiosamente, veio também da configuração do espaço algo que Bittar sentiu: “Foi como se o público estivesse no palco”. No palco italiano, explica ele, os dançarinos estão, em alguns momentos, de costas para a plateia e podem até respirar um pouco mais, ou deixar, por um átimo, o cansaço transparecer no rosto.

“Na Sala São Paulo, o fato de o público estar por todos os lados, em 360 graus, trouxe uma forte sensação de presença.” •

Publicado na edição n° 1310 de CartaCapital, em 15 de maio de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Corpos em sincronicidade’

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