Cultura

Confusão urbana, suburbana e rural

Onde foi parar o sonho de viver no mato, com galinha, porco e pato?

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Faz muito tempo que vi, numa revista Life, uma fotografia em preto e branco do escritor Ernest Hemingway lendo uma National Geographic.

Não era uma foto qualquer, era dessas imagens maravilhosas que a Life publicava e que a gente parava em cada página para observar os detalhes, tamanha perfeição.

Essa do Hemingway, lembro-me bem. Ele estava numa casa de campo, de madeira, numa ampla sala forrada de tapetes. Na parede, algumas cabeças de animais, vítimas da caça, muito em voga na época.

A poltrona em que o autor de O Velho e o Mar estava sentado, parecia de couro. Havia uma espingarda dependurada na porta, uma lareira e, em cima dela, outros exemplares da National Geographic espalhados.

Meu inglês era muito ruim, mas eu era apaixonado pela National Geographic que, em Belo Horizonte, a gente só encontrava na Livraria Van Damme da Rua da Bahia.

Vivia lá, folheando aquela revistinha de capa amarela, me deliciando com as fotografias que mostravam aventuras na África, a vida no Alasca, a fé dos tibetanos, o progresso da ciência, bichos esquisitos, as maravilhas da natureza.

Eu não era uma pessoa tão urbana ainda. Gostava de passar as férias na fazenda, ver matar porco, procurar ninho de galinha d’Angola, colher ovo de pata. Na horta da minha casa, gostava de plantar chuchu, tomate, couve e taioba.

Eu era um garoto que criava pombos, porquinhos da índia, periquitos, coelhos, tartarugas e esquentava com lâmpadas GE, os pintinhos de um dia. Na casa do vizinho tinha um tucano e uma coruja e eu sempre fui louco pra ter um tucano, isso antes do Ibama.

Toda vez que folheava essa Life, sonhava em ser Hemingway quando fosse homem feito. Pensava em deixar a barba crescer, ficar branca, calçar aquele chinelão da foto, aquela camisa xadrez de flanela, colocar na cabeça aquela casquete de feltro e passar horas perto de uma lareira lendo a National Geographic.

Mas nada disso aconteceu.

Depois de passar uma década em Paris, vim morar em São Paulo e aqui, raramente vejo bichos como periquitos, curiós e porquinhos da índia. Só mesmo quando vou na Cobasi.

Cultivo uma pequena horta na varanda do meu apartamento, mas tão simplória que não chega aos pés de nenhuma plantação de salsa e cebolinha, lá da Fazenda do Sertão.

Vivo encravado entre prédios, ouvindo panelas, procurando as estrelas, cheirando gasolina dos automóveis que passam sem parar. Mas ainda sonho muito com esse mundo que não existe aqui.

Outro dia mesmo sonhei que estava catando minhocas na beira de um riacho pra pescar piabas. Elas pulavam feito loucas pra escapar daquele tupperware que eu tinha nas mãos.

Minha mulher e minhas filhas são muito urbanas e já deixaram claro pra mim que interior, nem pensar. Uma das minha filhas chegou a dizer que cidade boa pra ela tem de ter uns 600 restaurantes japoneses, dois shows de rock por dia, um hospital como o Sírio Libanês e pelo menos 200 quilômetros de engarrafamento.

Um dia, passando por Cachoeira Paulista, ela, pequenininha ainda, exclamou:

– Como pode alguém morar aqui? Isso parece a novela das seis da Globo.

Sei que vou continuar vivendo nessa São Paulo de mais de 20 milhões de habitantes, para sempre. Feliz? Sim, feliz. Como diz o poeta Tom Zé, “porém com todo defeito, te carrego no meu peito”.

O que sobrou daquele sonho antigo, quando bati os olhos na fotografia de Ernest Hemingway na Life, foi apenas uma coleção completa da National Geographic, que guardo com todo carinho na minha revistaria. É a edição francesa, porque o meu inglês continua meio ruim, como naquele tempo em que lia a Life com um dicionário Caldas Aulete no colo.

[O título desta crônica foi surrupiado de um disco dos anos 1970, do saxofonista Paulo Moura]

 

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