Cultura

Começam a perceber que o Brasil é um país entristecido, diz cineasta

Em entrevista a CartaCapital, diretores do premiado Bacurau falam do filme e de como ele abre uma janela para o Brasil atual

Cena de Bacurau (Foto: Divulgação)
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Louco, surtado, estranho, maravilhoso, mágico. Estes foram alguns adjetivos usados pela imprensa internacional para definir Bacurau, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, que levou o Prêmio do Júri da última edição do Festival de Cannes, em maio. “São todas palavras que adoramos”, afirmaram os dois diretores em conversa com CartaCapital em uma rápida passagem por São Paulo, logo depois de um giro pela Austrália, onde o longa teve sua primeira exibição para um público ‘comum’ no Festival de Sidney. De São Paulo, Juliano seguiria para o Festival de Munique (Alemanha) e Kleber para o Festival de La Rochelle (França).

De fato, todas as palavras acima se aplicam tanto ao filme quanto à sua trajetória, que vem exigindo fôlego de maratonista dos cineastas pernambucanos. Desde a estreia mundial do longa na França, as reações positivas têm sido tão fartas quanto os convites que os cineastas têm recebido para exibi-lo.

Em linhas gerais: o filme conta a história dos moradores da pequena, mas empertigada, Bacurau, uma cidade no sertão que, depois da morte de uma antiga e importante moradora, passa a sofrer ataques de forasteiros. A reação da população, como afirma Kleber, é um “reflexo de joelho”, tão instantânea quanto violenta. Temos, assim, uma narrativa que une aventura, um certo ar de futurismo, western e cangaço, entre outros elementos, além de um elenco heterogêneo e harmonioso, com Sônia Braga, o alemão Udo Kier (Suspiria, Berlin Alexanderplatz, Garotos de Programa, Melancolia), Karine Teles (Que Horas Ela Volta?, Benzinho), Barbara Colen, Silvero Pereira, Thomas Aquino. “A urgência era a única forma que eles tinham de responder aos ataques. Não há celebração da violência. Não há o que comemorar porque no fundo é triste”, afirma Juliano. “E depois vem o questionamento sobre o que de fato está acontecendo. Tem compaixão na ação deles.  Não é questão de apenas pegar um machado e terminar aquilo”, completa Kleber.

Bacurau tem seus pilares fincados nas dinâmicas de poder que formaram o próprio Brasil e que até hoje ecoam na vida do País. Muito por isso, o paralelo com a situação brasileira atual é inevitável, ainda que o roteiro tenha sido escrito há tempos e o filme rodado em 2018. “Quando as pessoas afirmam que a gente fez um filme futurista, observo que os conflitos do filme são na verdade velhos. São problemas históricos que não se ajeitam. Prefeito corrupto, falta de água no nordeste, que é praticamente um problema criado pelo homem”, observa Kleber.

“Não há nada de futurista no filme. Na verdade, são repetições do passado. É muito bom o filme começar dizendo que a história se passa no futuro, mas na verdade não há nada de novo, exceto os gadgets  e um certo clima e um tom absurdo que talvez o filme tenha.”

No Brasil, a expectativa em torno da obra é grande e termina, para o público do Festival de Gramado, em 16 de agosto, quando o filme abre oficialmente o evento. Na sequência, estreia em circuito comercial em todo o País em 29 de agosto, com distribuição da Vitrine Filmes (de O Som ao Redor e Aquarius).

Confira a entrevista com os diretores:

(Foto: Reprodução Twitter)

CartaCapital: Kleber, você, que já havia mostrado Aquarius em Cannes em 2016, tem mais musculatura para encarar maratonas como esta. O que foi diferente?

Kleber Mendonça Filho: Fico feliz de ter dois filmes em Cannes e cada um ter sido bem recebido à sua maneira. São duas experiências muito parecidas com filmes muito diferentes. Bacurau é, de certa forma, estranho. Aquarius tem suas estranhezas, mas é um filme muito familiar. Bacurau é um filme que provoca várias reações. Fomos muito bem recebidos e sobrevivemos a Cannes muito bem. E desta vez com prêmios. A gente sabe que Cannes pode ser um festival muito duro.

CC: Sidney foi a primeira cidade que viu o filme após Cannes, e em uma sessão para o público em geral. Como foi a recepção?

KMF: Foi ótimo. Cannes foi espetacular, mas é sempre um festival frequentado por profissionais do cinema. Sidney teve sessões com duas mil pessoas, sendo público em geral. E a recepção foi incrível.

Juliano Dornelles: Desde o início do filme, a gente já ouviu o burburinho que algumas cenas provocavam. A cena da recepção fria ao prefeito, por exemplo, aparentemente é muito engraçada. Os australianos não concebiam como aquilo poderia acontecer.

CC: Esta cena revela muito da dinâmica de relações de poder no Brasil. O australiano talvez não entenda a postura de não entrar em um embate. Ao mesmo tempo, o Brasil está em um momento de se admitir violento. E Bacurau trata desta violência que existe, tanto latente quanto praticada diariamente no País.

KMF: Sim. O Brasil é muito violento. Há muito tempo. Eu era criança e tinha o Biu do Olho Verde, um assassino no Recife. Era um tipo de bandido que matava muita gente. Chico Science até o citou em uma de suas músicas. Havia um medo de se andar no bairro. Na minha adolescência, teve um massacre, uma chacina no Morro do Cantagalo, no Rio, e a Veja publicou uma matéria com um tanto de fotos.

JD: Eu morei num prédio em que uma família foi chacinada, em um bairro de classe média. Foi muito marcante.

KMF: Temos casos simbólicos como o Massacre do Carandiru, o Cangaço. O Brasil é muito violento. E é de uma maneira que ninguém quase mais fala disso. E há vários tipos de violência: “Seis rapazes negros mortos? Contracapa. Um branco classe média morto em um assalto? Capa!” São graus e pesos diferentes para a violência. Isso sempre me fascina muito.

CC: O que nos leva a Bacurau e a resistência dos moradores da cidade.

JD: Exatamente. Nos leva a como os forasteiros no filme veem estes moradores.

KMF: Ali são pessoas que “não fariam falta.” Mas se eles fossem atacar um condomínio em Alphaville seria um escândalo internacional.

CC: Mas aí chegamos na questão de nossa indignação seletiva. O que toleramos diz muito sobre o Brasil.

KMF: Exatamente. E isso também é violento. Um exemplo é o sistema de vingança que há, me parece mais no Rio e em São Paulo, quando há um incidente envolvendo a morte de um policial. Uma semana ou algumas semanas depois, um policial volta para a comunidade onde a morte ocorreu e executa pessoas a esmo. Isso é muito estranho. É um grau de violência muito alto.

CC: E Bacurau joga esta violência de volta na nossa cara, para além do filme de aventura e ação que também é.

KMF: Sim. Mas até o momento não houve brasileiros rechaçando isso. É como se víssemos e tivéssemos de lidar com este tema, que no fundo sabemos que é.

JD: A gente reconhece isso e sofre com isso. É triste. Mas Bacurau tem um outro lado, que é o movimento de trazer uma energia de compaixão, de permanência do povo que resiste no filme.

CC: Aliás, críticas internacionais trouxeram a palavra compaixão ao se referirem ao filme.

KMF: Exatamente. As pessoas identificam compaixão no filme. Não só a comunidade junta em termos de irmandade, mas diante dos forasteiros também. Um amigo inglês comentou que, na cena final, não há clima de pessoas celebrando, abrindo bebidas. Está todo mundo se perguntando “que m… é esta?”.

CC: Não há uma celebração da violência.

JD: Não. Porque, no fundo, é tudo muito triste. Não há motivo para celebrar nada.

KMF: Também se falou da cena em que o personagem do Damiano (naturista) e sua mulher reagem. Quando confrontam a forasteira, não querem trucidá-la. Eles tentam ajudar e até entender o que está acontecendo.

CC: Há uma resposta sem barbárie à barbárie.

KMF: É uma resposta extremamente violenta. Mas é como um reflexo de joelho. E depois vem o questionamento sobre o que de fato está acontecendo. Tem compaixão na ação deles. Não é questão de apenas pegar um machado e terminar aquilo, terminar de matar.

CC: Não foi a intenção de vocês, mas Bacurau, quando for visto pelo público brasileiro, vai levantar questões sobre o momento atual do País. Como vocês se preparam para isso?

JD: A gente não precisou fazer isso. As pessoas já estão fazendo isso para a gente. É inevitável. Mas da nossa parte, escrevemos o roteiro e filmamos muito antes de tudo que está ocorrendo no Brasil. Não há o que fazer a respeito. Fizemos o filme e as pessoas estão interpretando.

KMF: Algo que me surgiu em Cannes e que já adotei é que, quando as pessoas afirmam que a gente fez um filme futurista, observo que os conflitos do filme são na verdade velhos. São problemas históricos que não se ajeitam. Prefeito corrupto, falta de água no nordeste, que é praticamente um problema criado pelo homem. O sistema histórico de invasões no mundo, de violências que envolvem invasão. Na verdade, estupros de culturas, de países, de nações, de soberanias. Não há nada de futurista no filme. Na verdade, são repetições do passado. Esta ideia também estava em Som ao Redor, um filme que se passa numa rua moderna mas que, na verdade, era um engenho de cana. É muito bom o filme começar dizendo que a história se passa no futuro, mas na verdade não há nada de novo, exceto os gadgets  e um certo clima e um tom absurdo que talvez o filme tenha.

CC: Há a questão de Bacurau se tornar quase um não lugar.

JD: Há a importante questão da formação dessa comunidade.  A cidade tem uma dinastia de educadores, uma médica… É uma sociedade muito bem organizada onde ninguém poderia imaginar que houvesse esta organização. Em geral, o que há são grupos muito mais dependentes de um governo, ou o ‘senhor feudal’ do local. As pessoas em Bacurau são independentes, autossuficientes. E não é bem futurista, mas é quase uma utopia. Ao mesmo tempo, os personagens têm seu lado negativo. O filme fala de sobrevivência. E eles sabem sobreviver muito bem.

KMF: A gente escreveu o roteiro com base nas nossas sensibilidades pessoais e na forma como a gente viu e recebe a ideia de Sertão. Morando no Recife, e não sendo sertanejo, a gente recebe o sertão porque um amigo é sertanejo, a família de alguém que se namora é do sertão… A gente conviveu com a ideia de sertão, conviveu com quem é do sertão.

CC: E viajou muito pelo sertão no processo do filme.

KMF: Sim. O roteiro já existia e chegamos em um lugar que seria uma das possibilidades de ser a cidade de Bacurau. Apesar de não achar que seria o cenário ideal, ficamos apaixonados pelo lugar; as pessoas eram como as de Bacurau, não era uma utopia porque aquelas pessoas incríveis existem. Mas o dado mais incrível desse lugar é que havia uma estátua na praça. Não era de um homem. Era de uma mulher. E esta mulher não era política. Ela era professora. Isso é incrível. A gente podia ter colocado isso no roteiro, uma estátua. A gente não colocou, mas tinha escrito um roteiro em que há um homem negro,  filho de uma mulher negra de uma dinastia de educadores, uma família crucial para Bacurau. A gente chegar naquela cidadezinha e ter aquela estátua de uma professora foi algo muito especial.

CC: E como não poderia deixar de ser, o cangaço, com sua importância para o imaginário do brasileiro, está presente em Bacurau.

JD: Sim. O museu do cangaço que há no filme existe. Aliás, existem vários museus dedicados ao cangaço no sertão.

KMF: Quando a gente escreveu o roteiro, claro que pensou no cangaço. Juliano trouxe a questão da vaidade dos cangaceiros, os anéis, a forma chamativa como se vestiam.

JD: Os cangaceiros se montavam, tinham características femininas, costuravam suas roupas, coloridíssimas, usavam muito perfume.

CC: Politicamente, como vocês estão sentindo a reação do público estrangeiro a este Brasil contemporâneo?

JD: As pessoas estão preocupadas com o Brasil porque sempre souberam que é um país feliz, alegre, ensolarado, alto astral. E as pessoas estão começando a perceber que o Brasil de agora é um país entristecido. Isso para mim é o que mais me chama atenção.

KMF: O material do Glenn Greenwald (do The Intercept) está facilitando muito a explicar o Brasil para os estrangeiros. Antes era uma explicação oral, verbal, muito complicada, complexa. Mas agora com a imprensa internacional dando o escândalo da Vaza Jato é muito mais fácil de explicar para estas pessoas muito preocupadas com o Brasil.

JD: O engraçado é que uma das perguntas mais recorrentes que fazem tanto para mim quanto para Kleber é: “Vocês vão continuar lá? Por que vocês não vão embora?”

CC: E você responde o quê?

JD: Cada vez respondo uma coisa diferente. É difícil responder. Falo o que estou sentindo na hora, mas é difícil.

KMF Que eu adoro o Brasil, adoro minha casa, adoro o Recife. Mas é muito frustrante ver, voltando à ideia de que o futuro é uma repetição do passado, que agora a gente tem uma volta real a erros do passado.

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