Cultura
Com show ameaçado no Brasil, Kanye West encarna o vazio de sentido da cultura pop
Apoiador de Donald Trump e admirador declarado de Hitler, o rapper transformou a provocação de ultradireita em identidade
Após o cancelamento do show em Interlagos, ainda não se sabe onde o rapper americano Kanye West se apresentará no dia 29 de novembro, em São Paulo. A prefeitura vetou o uso do autódromo, alegando que não compactua com discursos de ódio, racismo e apologia ao nazismo — ideias associadas ao artista em suas declarações recentes.
Pressionado, o município não quis associar sua imagem a um artista acusado de antissemitismo num momento em que reforça publicamente laços com o governo de Benjamin Netanyahu.
O episódio soma-se a decisões recentes semelhantes, embora incomparáveis do ponto de vista moral. Em agosto, a prefeitura cancelou unilateralmente o contrato que permitiria a realização da Flipei, uma feira literária de editoras independentes, na Praça das Artes, sob a justificativa de que o evento teria “caráter político-ideológico”. Poucos dias depois, um show da banda Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, promovido pela própria administração municipal, foi interrompido após a projeção de mensagens de apoio à Palestina.
Mas o problema Kanye West (ou Ye, como ele prefere ser chamado) é mais profundo. O rapper é uma das figuras mais contraditórias da cultura pop contemporânea. Apoiador declarado de Donald Trump, defensor do cristianismo ultraconservador e, ao mesmo tempo, admirador de Hitler — chegou a lançar neste ano uma faixa exaltando o führer, logo retirada das plataformas de streaming —, Ye parece encarnar o colapso moral e simbólico de uma era em que a provocação virou identidade.
A ironia é que boa parte de suas declarações vai de encontro à própria tradição do hip-hop, movimento que nasceu como voz de resistência negra e denúncia da opressão. O mesmo gênero que lhe deu fama e fortuna tem como alicerce valores de liberdade, justiça e enfrentamento a figuras autoritárias. Tudo o que West hoje nega.
Apesar disso, seu magnetismo permanece. A produtora responsável pelo show em São Paulo afirma já ter vendido cerca de 30 mil ingressos, mesmo sem local definido. É uma cifra robusta para um artista cuja relação com a cultura que o formou se tornou tão conflituosa.
A pergunta que fica é: por que há tanta disposição no Brasil para aplaudir um rapper que flerta com o racismo, o autoritarismo e o negacionismo histórico?
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