Cultura
Com pornochanchada, documentário desconstrói o Brasil dos militares
‘Histórias que nosso cinema (não) contava’ mostra como parte importante da memória do cinema e do auge da repressão foi abafada na história brasileira
Qual o lugar da pornochanchada no cinema brasileiro?
A busca por resposta é uma discussão com pano para manga, mas ela certamente passa por “Histórias que nosso cinema (não) contava”, filme de Fernanda Pessoa que entrou em cartaz na quinta-feira 23. Trata-se de um documentário de montagem feito inteiramente com imagens e sons, sem entrevistas ou off, a partir de 27 pornochanchadas.
O título não é só uma referência a um clássico da época, “Histórias que nossas babás não contavam”. Serve como ilustração do percurso da cineasta até um dos períodos mais produtivos do cinema nacional, e que durante muito tempo permaneceu em uma prateleira empoeirada entre os cânones e os filmes de sexo explícito que invadiram as salas e videolocadoras a partir dos anos 1980.
O percurso ajuda a compreender não só o apagamento da memória desses filmes, que durante a faculdade a diretora só ouvira falar de passagem, mas também de um período marcado pela repressão.
Encontrar material da época em boas condições levou dois anos de pesquisa e uma peregrinação até colecionadores privados, cinematecas e YouTube. Alguns produtores sequer sabiam onde estavam cópias originais dos próprios filmes. Outros foram perdidos e viraram lenda.
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Ainda assim, ela conseguiu selecionar, em um universo de cerca de 130 obras produzidas na década de 1970, trabalhos que mostravam os traços históricos e políticos de um país que desmentia o ideal de “Brasil grande” criado pelos militares.
No livro “O Cinema Dilacerado”, José Carlos Avellar escreve que “para o poder, que desde sempre vê as pessoas comuns como incultas e broncas, a forma mal acabada da pornochanchada era o mesmo que dizer o ‘povo no poder’, o mesmo que desmontar os privilégios das elites que defendiam uma grosseria civilizada”.
Esse país que a pornochanchada expõe, resume o autor, tinha como características a linguagem estúpida, a expressão deformada, a palavra cortada. Naquela época, as informações não podiam circular. As conversas estavam amordaçadas. E a pornochanchada transformou isso em imagem.
É como se, diante dos impedimentos do período, a pornochanchada fizesse uma tentativa de criar uma linguagem de censura, “uma variante da fala autoritária de poder”.
Cartazes dos filmes pesquisados para o documentário (Divulgação)
Essas discussões reverberam no trabalho de Fernanda Pessoa, que em 2016 discutiu a relação entre as pornochanchadas e a censura na videoinstalação Prazeres Proibidos, realizada no MIS-SP.
O filme coloca em primeiro plano obras que fizeram grande sucesso e que foram praticamente abafados na cena seguinte, a da reabertura – de alguma forma, o país ainda se nega a ser reconhecido ali, o que pode ser demonstrado pelo ostracismo dos atores e realizadores da época, e que só recentemente começam a ser redescobertos.
O Brasil, lembra a diretora, ainda é um país machista, misógino e racista e era ainda mais no auge das pornochanchadas, quando os corpos femininos eram usados como metáfora para as grandes obras do chamado “milagre econômico”. O contato com a produção da época produziu nela sentimentos conflitantes, já que parte dos filmes trazia também mulheres fortes na trama e debates sobre aborto, greve, separação.
Resgatar essa memória é uma forma de resgatar uma linguagem que inspirou e ainda ecoa por aí, para o bem o para o mal. Como lembra a própria diretora, Nelson Pereira dos Santos, ícone do Cinema Novo, produziu filmes como “Aventuras amorosas de um padeiro”, de Waldir Onofre. Atores como José Lewgoy transitavam entre as pornochanchadas e o Cinema Novo. Carlos Reichenbach também flertou com as pornochanchadas até se tornar um “cânone”.
Como escreveu a pesquisadora e crítica de cinema Andrea Ormond na revista Cinética, as questões da pornochanchada são complexas e nunca deixaram de existir. “Já nos anos 2000, produções despreocupadamente explícitas, como Brasileirinhas e similares, ainda continham narrativas que emulavam os jogos e o discurso das velhas pornochanchadas”, escreveu no site da revista.
Como Ormond resumiu, em uma cápsula do tempo palavras horríveis ainda existem, e foi essa cápsula que Fernanda Pessoa reabriu, brincando de aprendiz de feiticeira. Ela arremata: “Se foi um bálsamo ou uma caixa de Pandora, cabe ao espectador julgar”.
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