“Com falta de oportunidade, ninguém sai da favela. Só vai sair morto”

Ex-moradora da Rocinha, Geovana finaliza álbum e lamenta a vida difícil

A cantora Geovana (Foto: Caldas de Oliveira/Coletivo Sindicato do Samba/Divulgação)

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Conversar com Geovana é ouvir de viva voz as mazelas da vida e da música. Aos 71 anos, a compositora e cantora de voz potente finaliza seu novo álbum para lançar em 2020 depois de longo tempo sem gravar.

O trabalho chama-se Brilha Sol. “É para brilhar pelos tempos que ficaram com nuvens tenebrosas”, diz.

Esse período difícil começou cedo para Geovana. Ela cresceu no complexo da Rocinha, num trecho chamado Morro do Laboriaux, no Rio de Janeiro.

Lembra ela que lá ainda tinha fruta no pé, mas quando voltou – ou melhor, fugiu – de uma temporada em um colégio interno no sul de Minas Gerais, ainda menor de idade, encontrou tudo invadido.


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Em meio às dificuldades da família sem recursos, começou a compor (letra e melodia) e andar pelas rodas de samba da cidade.

Até que um dia sua voz foi reconhecida, conseguindo avançar na peneira do mercado fonográfico. Naquela época já tinha conquistado um festival com um samba de sua autoria.

“Comigo era selvagem. Eu era brava. Eles diziam: ‘Não mexe que ela é do morro, negra’”, lembra. “Mas se abrisse as pernas, eles vinham. Vi muitas cantoras fazerem isso”, conta.

Geovana acredita que por não ter se entregado ao sistema fez o seu primeiro trabalho levar quatro anos para ficar pronto. O álbum Quem Tem Carinho Me Leva (1975), produzido por Rildo Hora, no fim, teve bom resultado e repercussão principalmente entre o pessoal que curtia o samba rock, uma novidade na época, já que o registro tinha essa levada.

Foi justamente esse trabalho – levando a ser chamada na época de Deusa Negra do Samba Rock – que a fez há pouco anos ser reconhecida aqui em São Paulo para, em seguida, receber convite para gravar o terceiro álbum.

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Mas naqueles longínquos anos de 1970, as festas apareciam, mas a grana mesmo custava a entrar.

“Tinha convite para ir na casa dos bacanas para tomar cerveja. Mas quando chegava o dia que não tinha nada, você ia comer o quê? Vento?”

Afastamento da música

Ela conta que o fato de não ter ficado junto com a patota e alguém para orientá-la, dificultou as coisas.

“Fui trabalhar na casa de família. Depois fui vender livro no Museu da Imagem do Som. Daí conheci as pessoas da música mais séria.”

Aí veio outro álbum, o Canto para Qualquer Cantar (1988). Como o trabalho não foi bem, resolveu se afastar de vez da música.


“Sai do Rio e comecei a fazer show em são Paulo. Vim várias vezes. Mas aí era enganada, o cara levava três meses para pagar mil reais, para depois ficar sabendo que ele tinha contratado Wanderléa, entre outros.” Como se sabe, artistas consagrados só fazem show se receber antecipado, mesmo que seja uma parte.

Em 2010, a cantora mudou-se em definitivo para São Paulo: “Morei em várias bocadas”.

De trabalho em trabalho precário, foi ser segurança numa casa noturna no centro da cidade. “Barrei várias vezes pessoas que chegavam armadas.”

Foi naquela área, num bar próximo, onde tomava seu conhaque, que o sambista Guilherme Lacerda e um pessoal ligado à música do Batalhão da Vagabundagem e do coletivo Sindicato do Samba a reconheceram e passaram a ajudá-la. Isso tem cerca de quatro anos.

De lá para cá a vida mudou. Passou apenas a viver de shows, junto com aposentadoria de um salário mínimo. E Guilherme, junto com Camilo Árabe, produziu seu álbum.

“Ele (o novo trabalho) é minha saúde mental, espiritual, me equilibra. Não tenho preocupação. Essas coisas (da vida difícil) já me tirou sono.”

O trabalho terá músicas só de Geovana e dela com parceiros, inclusive com seu produtor que tem trabalhos de samba lançados.

Aliás, ela nunca parou de compor e teve músicas suas gravadas por Clara Nunes, Wilson Simonal, Martinho da Vila, entre outros.

O novo álbum tem samba, ijexá, chote, maxixe. Ela grava pela primeira vez a sua composição mais conhecida, Ô Irene (feita junto com Beto Sem Braço), que é um dos sucessos do Fundo de Quintal.

O Brilha Sol já está gravado e conta com a participação de Fabiana Cozza, Thaíde, entre outros.

Falta governo

Hoje, Geovana mora dignamente na Sé. “Quando tem manifestação eu desço por que gosto.” Acha que é preciso abrir a boca para criticar o que está aí.

“Para o negro pobre, assim como o branco pobre, está ruim. Principalmente agora. A fome, as queimadas, a falta de comando, essas conversas que não há racismo no Brasil. O cara quer acabar com a arte, com o verde, com o negro. O cara quer dizer que é Deus em primeiro lugar. O que Deus tem a ver com isso.”


E vai além: “Bolsonaro podia ser uma pessoa melhor. Aquele negão do lado dele parece um ET. Parece que está pintado de preto”.

Com vivência na favela, critica a falta de oportunidade e a forma de governar o País, em que levam as pessoas a permanecerem onde estão.

“Ninguém sai da favela. Só vai sair morto. E ainda vai esperar quatro horas para chegar o rabecão para levá-lo.” Geovana é uma das poucas exceções, ainda que tenha sido com enormes sacrifícios e sorte nos anos mais recentes.

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