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Com a perna no mundo

Os 80 anos de nascimento de Gonzaguinha ensejam o lançamento de um disco e ainda um show-homenagem

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Resgates. Daniel Gonzaga, seu filho (à esq.), iniciará a turnê Gonzaguinha Paralelo B, em outubro. Sandra Pêra, mãe de Amora, outra filha do artista, produziu um disco com a obra dele – Imagem: Redes Sociais/Gonzaguinha e César Araújo
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No enterro de Luiz Gonzaga do Nascimento Jr., o Gonzaguinha, morto num acidente de carro no Paraná, em 1991, aos 45 anos, Sandra Pêra, mãe de sua filha Amora, foi avisada de que um desconhecido havia deixado uma encomenda na casa de sua irmã, a atriz Marília Pêra (1943–2015). “Passei lá, e tinha uma fita cassete”, conta a atriz e cantora em entrevista a CartaCapital.

Na fita, havia uma entrevista dada a uma rádio na qual Gonzaguinha discorria sobre a paixão: “É um barato. (…). O importante é que a gente não se arrependa do que foi feito. Eu tenho uma filha da paixão, Amora Pêra, filha da Sandra”.

Esse trecho da gravação está na abertura da música Eu Apenas Queria Que Você Soubesse, interpretada por Sandra Pêra em duo com Amora, no álbum de mesmo título recém-lançado pela Biscoito Fino. O disco é dedicado à obra de Gonzaguinha, que completaria 80 anos no dia 22 de setembro.

O cantor e compositor era intenso quando falava de amor e expressava sentimentos. Sandra lembra bem de, a caminho da sala de parto, ter ouvido Eu Apenas Queria Que Você Soubesse. “Quando fui sendo levada pelo corredor do hospital ele, sem falar nada, colocou no meu ouvido um cassete com a música.”

A letra diz: Eu apenas queria que você soubesse/ Que essa criança brinca nesta roda/ E não teme o corte de novas feridas/ Pois tem a saúde que aprendeu com a vida. Eu apenas queria que você soubesse/ Que aquela alegria ainda está comigo/ E que a minha ternura não ficou na estrada/ Não ficou no tempo presa na poeira.

Temas como afeto, maturidade, persistência e esperança, presentes nessa canção, permeiam várias das músicas de Gonzaguinha, sejam elas românticas, sejam engajadas.

Grito de Alerta, inspirada em um desencontro amoroso homoafetivo do cantor Agnaldo Timóteo (1936–2021), seu amigo, é outro exemplo marcante de seu estilo: Veja bem/ Nosso caso é uma porta entreaberta/ Eu busquei a palavra mais certa/ Vê se entende o meu grito de alerta.

No álbum-homenagem, a cantora evitou gravar músicas que ela considera “óbvias”, como a própria Grito de Alerta e Explode Coração – ambas gravadas no fim dos anos 1970 por Maria Bethânia, em versões de grande sucesso.

Entre as composições escolhidas para relembrar o artista estão Maravida, com participação de Chico Chico, Ponto de Interrogação e Recado. Esta última, um duo de Sandra com Simone, é uma das canções de denúncia feitas por Gonzaguinha na ditadura: Se me der um beijo eu gosto/ Se me der um tapa eu brigo/ Se me der um grito não calo/ Se mandar calar mais eu falo.

Ela ainda registrou A Felicidade Bate à Sua Porta, com as colegas Regina Chaves e Dhu Moraes, suas companheiras no grupo As Frenéticas, criado em 1977. A canção de Gonzaguinha estava no primeiro registro fonográfico do conjunto.

Três anos depois, Sandra e Gonzaguinha viveriam um romance – ele sendo ainda casado. No ano seguinte, nasceu Amora. O cantor já era pai de dois filhos, Daniel e Fernanda, fruto do casamento com Ângela. Depois de Amora, ele teve Mariana, com a então mulher Louise.

Gonzaguinha afrontou permanentemente as posições ideológicas do pai, Gonzagão, além de repudiar o fato de ele não tê-lo criado

A história de vida de Gonzaguinha foi registrada em sua música não apenas por meio de seus amores. Sua biografia na infância permeia outro sucesso incluído por Sandra Pêra no álbum, Com a Perna no Mundo: Sentava bem lá no alto/ Pivete olhando a cidade/ Sentindo o cheiro do asfalto/ Desceu por necessidade/ Ô Dina/ Teu menino desceu o São Carlos/ Pegou um sonho e partiu.

Dina criou Gonzaguinha. Sua mãe, Odaléia, morreu dois anos depois de ele ter nascido. Luiz Gonzaga, o Gonzagão (1912–1989), pai cuja paternidade biológica nunca foi provada, deixaria o menino na casa da Dina, no Morro de São Carlos, na Zona Norte no Rio, para seguir seu périplo, Brasil afora, com a sanfona debaixo do braço.

A relação de pai e filho nunca foi boa. Gonzaguinha afrontou permanentemente as posições ideológicas de Gonzagão, além de repudiar o fato de ele não tê-lo criado. As músicas de ambos também revelam personalidades diferentes. Enquanto um se posicionava contra a ditadura, outro fazia baiões que tratavam do homem sertanejo. Ambos só se reconciliariam no fim da vida.

Daniel Gonzaga, filho mais velho de Gonzaguinha – que conviveu de perto com a música dele –, também preparou uma homenagem para a efeméride. No dia 27 de outubro, ele inicia no Teatro Rival Petrobras, no Rio, a turnê nacional Gonzaguinha Paralelo B.

O projeto é composto, sobretudo, de músicas menos conhecidas do compositor, como Plano de Voo, Mundo Novo, Vida Nova e Tá Certo, Doutor – feitas na década de 1970 –, mas contará também com o hit O Que É O Que É.

“Quero mostrar ao mundo fragmentos do trabalho dele que as pessoas conhecem menos. A ideia desse show é também cantar músicas que têm alguma conexão com a minha vida”, conta o cantor e compositor. Entre essas músicas está Sementes do Amanhã, a primeira do pai por ele gravada, num coro infantil, aos 8 anos.

“A integridade e a honestidade dele sempre me encantaram”, diz Daniel, que cuida da preservação da obra do pai.

Embora Gonzaguinga tenda a ser reconhecido pela crítica mais como um autor de boas canções do que um artista de grandes álbuns, seu talento é inegável. E o novo disco e o novo show são uma merecida homenagem a alguém que partiu cedo, mas deixou uma obra marcante. •

Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Com a perna no mundo’

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