Cultura

Cinquenta tons de vermelho

A historinha de uma toalha, numa Paris velha de guerra

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Domingo passado, quando vi todo mundo na rua de blusa amarela, gritando “nossa bandeira jamais será vermelha”, achei que minha cabeça já estava pelas tabelas. E quando ouvi a cidade, de noite batendo as panelas, juro, eu pensei que era ela voltando pra mim.

Sou do tempo em que os militares censuravam as músicas de Chico Buarque, podavam as reportagens do Opinião e queimavam, em sinistras fogueiras, O Vermelho e o Negro, o clássico de Stendhal.

Sou do tempo em que os militares hipócritas, disfarçados, olhavam ao redor. Prendiam, torturavam e sumiam com amigos, pra nunca mais.

Sou do tempo em que meu pai, cauteloso, fechava a porta do seu escritório, olhava no fundo dos meus olhos e me passava uma lição:

– Muito cuidado com esse calendário da UNE que você colocou debaixo do vidro da sua escrivaninha. Você pode ter problemas com ele.

Sou do tempo em que precisava esconder no porão da minha casa da Rua Rio Verde, o livro Miséria da Filosofia, minha coleção da revista Civilização Brasileira, os discursos de Dom Helder e as apostilas de Paulo Freire. Tudo bem escondidinho, dentro de uma caixa de papelão do extrato de tomate da marca Peixe.

Essa introdução assim meio poética é só para lembrar uma historinha engraçada que aconteceu em Paris, início dos anos 70, quando lá cheguei para passar longos invernos.

Morávamos na Rue de la Roquete, no XIème Arrondissement, o bairro mais comunista da cidade, segundo um gráfico que vi, publicado na revista Le Nouvel Observateur, logo após as eleições.

Era uma casa muito engraçada, não tinha mesa, não tinha geladeira, não tinha televisão, não tinha nada. Tinha sim. Havia um gravador, muitas fitas k-7, muitos livros, uma estante feita com duas tábuas e quatro tijolos, um tatame no chão e um carpete azul, medonho.

Era em cima desse carpete barato que, todas as manhãs, estendíamos nossa toalha para tomar o petit déjeuner, porque almoço e jantar era no bandejão da universidade, estudantes que éramos, sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes. A toalha era vermelha, bem vermelha, assim de um vermelho sangue.

Nossa rua era a passarela dos comunistas, que desfilavam por ali quase toda semana, convocando greves, levando cartazes contra tudo e contra todos e vendendo exemplares do jornal Front Rouge, quentinho.

Lá em cima, na janela do quarto andar, eu me sentia um Lênin na sacada do Kremlin, saudando o seu povo. Vinte e poucos anos, achava aquilo tudo um barato, a mais perfeita tradução da liberdade e da rebeldia, já que tinha deixado pra trás um país sombrio e censurado onde, quem saia às ruas assim, levava porrada. Aqui, era proibido proibir.

A historinha é essa: Um dia, o Ceará, amigo nosso que nem preciso dizer de onde veio, teve a ideia de sacudir a nossa toalha vermelha na janela, assim que despontou lá longe, mais uma marcha da classe operária.

Quanto mais aquela trupe se aproximava do número 79, mais sacudíamos a nossa toalha vermelha. Quando eles chegaram bem debaixo do nosso prédio, olharam pra cima e, de punhos cerrados, começaram a gritar palavras de ordem:

– Ni Giscard!

– Ni Mitterrand!

– Une seule solution!

– La révolution!

Hoje, eu me pergunto apenas uma coisa: Onde será que foi parar o Ceará?

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