Cultura

CineCeará: para aprender com um júri que vê o melhor

Festival cearense termina com reconhecimento do sombrio O Clube e dos autorais Alonso e Pedro Costa

O casal, melhor ator e atriz do festival, Itziar Ituño e Alejandro Goic
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Uma seleção de alto nível, um júri de igual estatura e decisões idem. O 25º CineCeará terminou na última quarta-feira com um resultado para envergonhar muitos colegiados recentes entre os festivais do país. Com uma ou outra opção que se poderia discutir, escolheu-se destacar os melhores concorrentes, e entre eles, o melhor. O Clube, potente obra do chileno Pablo Larraín, foi o vencedor entre os longas-metragens e ainda teve valorizado seu elenco masculino, realmente soberbo, em reconhecimento coletivo de interpretação.

Levou também o Troféu Mucuripe de roteiro, assinado pelo diretor e dois colaboradores, e o Prêmio Abraccine da crítica presente ao evento. Um feito e tanto para um quadro temático que inclui pedofilia e corrupção moral na Igreja católica. Só não fez barba, cabelo e bigode porque não se sagrou na direção –e nem precisava. Em outra decisão sábia, preferiu-se Lisandro Alonso –por Jauja–, sem dúvida um trabalho de cunho autoral e, portanto, muito devedor da figura do cineasta. A partir daí é gosto de cada um encontrar variantes possíveis.

Uma delas está também em apontar o personalíssimo e sofisticado trabalho do português Pedro Costa em Cavalo Dinheiro. Quem sabe mais até que Alonso, seu cinema é único, difícil de ser enquadrado numa tendência ou de correlacionar com outros realizadores. Costa prossegue compondo um quadro humanista e dramático dos imigrantes cabo-verdianos em Portugal, a partir de um relato documental do recorrente protagonista Ventura e seus compatriotas próximos.

Seria, portanto, um candidato mais que pertinente a melhor direção. Ficou, contudo, com prêmios técnicos como o de direção de arte, som e fotografia. Esta é primorosa, a cargo de Leonardo Simões, parceiro do diretor desde O Quarto de Vanda. Ele veio representar o filme e como a preparar o cenário que se efetivou disse no encontro com público e jornalistas ser apenas um técnico a serviço de Costa.

Difícil acreditar, com a luz que banha os “atores” a maneira caravaggesca, ou como Rembrandt, dando-lhes uma definição redentora, diáfana e sublime. Mas Simões é modesto, talvez tímido demais para ir além de sua esfera no platô, como dizem os portugueses sobre o set de filmagem. E, como leitura crítica adicional, confidenciou estranhar o prêmio de direção de arte, já que a mise-en-scéne parte justamente desse trabalho conjunto da dupla e em pouco ou nada leva em consideração a ambientação.

Se quase chega a ser um equívoco, melhor seria ter atribuído nesta categoria o prêmio a Loreak, o filme basco que ao centrar foco no comportamento complexo e dúbio dos personagens compõe um cenário interno relevante e que reflete a postura deles.

Verdade ser este cenário pouco impactante num primeiro olhar, mas a sutileza pode ser ainda mais significativa no procedimento do trabalho. Além do mais, é um filme de símbolos, as flores (loreak em euskero, a língua basca), uma joia que esclarece os vínculos amorosos, as cinzas de uma cremação, e por aí vai. Por dever em grande parte seu interesse a atuação, o filme ficou com a estatueta de melhor atriz para Itziar Ituño, cuja personagem inicia menor para ganhar então o protagonismo.

Nada desabonadora a escolha, especialmente porque presente no festival, Itziar se revelou a musa do evento, simpática e participativa nas discussões, assim como conquistou a todos Alejandro Goic, um dos atores de Larraín. Mas uma presença feminina de muito mais destaque e perturbadora é Antonia Zegers em O Clube, esposa de Larraín e única mulher entre os personagens sacerdotes, em uma elaboração de caráter aterrorizante.

O Clube.jpg cena de O Clube, o grande vencedor do festival cearense

Compreende-se a alternativa do júri em não apostar os prêmios principais num candidato único que, afinal, receberia a honra maior. Por isso mesmo, a equação talvez pudesse ter considerado Antonia e abdicar do elenco masculino em favor de um candidato como Paul Vega, intérprete de um médico legista taciturno em NN, do peruano Héctor Gálvez, um dos dois longas, ao lado de Real Beleza, de Jorge Furtado, que saíram do Cine São Luiz na noite de quarta sem qualquer reconhecimento.

Ao mencionar Furtado, é preciso esclarecer que a competição do CineCeará leva em conta os títulos sem distinção de origem ou idioma no mapa ibero-americano. No caso brasileiro permaneceram dois títulos, depois que os produtores de Que Horas Ela Volta, filme de Ana Muylaert, preferiram retirá-lo do calendário quando este já estava anunciado. Ainda informalmente, diz-se que a razão foi transferir o longa para a noite de abertura do Festival de Gramado. Basta esperar a seleção ser oficializada nos próximos dias para se ter a confirmação. Descaminhos a parte, o fato é que Real Beleza e Cordilheiras ao Mar — A Fúria do Fogo Bárbaro, o olhar documental do jornalista Geneton Moraes Neto sobre o episódio polêmico do apoio de Glauber Rocha ao regime militar, acabaram por ser os filmes de debate mais apurado, e em sentido diferente controversos, pesando aí a disposição dos realizadores em dialogar.

Se o júri de múltiplas nacionalidades aponta ter se ressentido do tom morno do filme de Furtado, sugere por outro lado ter ficado alheio a questões críticas mais aprofundadas a respeito do documentário de Geneton. Seria leviano supor que o elegeu para Prêmio Especial do Júri para não deixar os concorrentes do país sede fora do palco. Afinal Glauber Rocha é nossa maior referência ainda no exterior e segue formando gerações não apenas com seus filmes mas também seu pensamento. Nesse aspecto o filme cumpre a função básica de esclarecer sua figura expansiva e extravagante, seu ideário original e contestador, a busca eterna pelo valor mais genuíno brasileiros.

Está tudo lá, entre mais de vinte depoimentos, o que torna a experiência um tanto exaustiva e reiterativa. O ponto central, no entanto, o que moveu Geneton, rendeu debate acalorado entre os profissionais da imprensa brasileira quanto ao enfoque francamente condenável ao movimento de esquerda, tratado como responsável pela “degola” de Glauber, e a visão mais maleável aos militares, que enxergaram no cineasta um aliado em tempos de abertura política. Nuanças e peculiaridades, claro, que dificilmente saltariam aos olhos estrangeiros, e a bem da verdade, ainda produzem faíscas por aqui longe de serem abrandadas. Geneton disse saber do preço a se pagar por tentar contextualizar as duas vertentes políticas em jogo, e por enquanto só fez atiçar o fogo. Mas é filme para se voltar com novos olhares, e especialmente ouvidos, e saber se foi de fato um merecedor de destaque no CineCeará.   

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