Cultura

Cidade do “xixi na rua” para bolsonaristas, Paris é o amor sussurrado

A cidade mais visitada no mundo gosta é de abrigar os perseguidos por sua crença política

Em Paris a primeira experiência dentro dessa visão é a abertura dos pátios das escolas aos finais de semana para ampliar as áreas públicas de lazer (Foto: iStock)
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Paris empresta seu luxuoso cenário a mais de 400 filmes, a cada ano, de acordo com o Office du Tourisme de Île-de-France. Média de mais de um filme por dia. Ainda assim, há quem diga que ela é infecta, feia e decadente. Uma criatura verde-amarela moralmente infecta, feia e decadente que atende pela alcunha de Véio da Havan deixou extravasar sua dor de cotovelo pelo tributo da Cidade-Luz ao presidente Lula, e acrescentou: “Lá, fazem xixi na rua”. A menos que o Carnaval brasileiro tenha se transferido para Paris e só o abilolado fanático da mais-valia tenha ficado sabendo, o xixi na rua ainda é nosso e o fascínio pela escatologia, da golden shower à bolsa de colostomia, continua sendo atributo do patético guru dele – nada a ver com a capital francesa.

Além do rancor dos ressentidos, se há risco que corre a mais filmada, a mais fotografada, visitada, comentada, a mais descrita, desenhada e pintada metrópole do mundo é o de ser tomada pelas aparências, embora a própria Paris, histórico epicentro da alta moda, tenha respeito por sua imagem e mostre prazer em se olhar no espelho. Mas o clichê espreita a cada take, a cada enquadramento, painel redundante daquela Paris que convida ao documentário, a Torre Eiffel, os Champs-Élysées, a pirâmide do Louvre, o Arco do Triunfo, o Marché aux Puces, a Avenue Montaigne, a Place Vendôme, a Catedral de Notre-Dame… 

A secreta essência de Paris consegue camuflar-se, contudo, nas ruas de pedra, no café com terraço, nas feiras de rua, nos olhares perdidos, nas paixões reencontradas, no beijo roubado de Robert Doisneau – a cena mais parisiense de Paris. À margem da rotina turística, Paris tratou de preservar o encanto silencioso de quem pode renunciar à sua própria beleza.

Resiste até mesmo à grandeza arquitetônica, tão acalentada pelos visitantes, que o reinado absolutista dos Luíses fez erigir, à sua imagem e semelhança, no confronto com os resquícios do vilarejo medieval de becos sombrios e ruelas enviesadas. Paris mudou de escala, nos séculos XVII e XVIII, num frenesi de palácios, pontes, prédios, hôtels particuliers, não obstante relutou em trocar o prazer lírico da flânerie pelo culto ao monumental. Raras metrópoles conseguiram, no século XX, ceder ao monopólio urbano do automóvel, circunscrevendo os sórdidos engarrafamentos para além do Boulevard Périférique, o anel rodoviário que circunda os 20 arrondissements.

Difícil para o alienígena afobado perceber a graça de uma caminhada a esmo, a jornada sem outro objetivo que não a própria jornada, a flânerie urbana ao rés do chão que fez de Charles Baudelaire o porta-voz da modernidade no século XIX. Deambular era como uma prática de boêmia poética e continuou sendo mesmo após a radical operação bota-abaixo promovida pelo barão Haussmann, com nítida orientação ideológica. Os grandes bulevares abertos como artérias para dificultar a proliferação das barricadas revolucionárias passaram a velar pelo footing da burguesia, além de expelir do centro para a banlieu os pequenos artesãos.

Walter Benjamin restaurou a mística do andarilho na Paris do século XX, revivendo, à sombra das galerias meio fantasmagóricas, das passages com surpresa de catacumbas, a mística de Baudelaire e do frenesi artístico que fizera de Paris, defendia Benjamin, “a capital do mundo” do século das revoluções. No século seguinte, o das guerras mundiais, o judeo-alemão Walter Benjamin foi um refugiado, encarnando, ele próprio, um dos atributos subjetivos da Paris de adoção: a solidariedade com as vítimas de todas as opressões.

A cidade mais visitada no mundo gosta é de abrigar os perseguidos por sua crença política

É natural que se preste a este papel a comuna que ditou, em 1789, apenas um mês após a Queda da Bastilha, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento fundador da Revolução Francesa. Os direitos até então reconhecidos como privilégio da nobreza de sangue e dos proprietários eram estendidos a todo ser humano. Por triste ironia, há um país determinado a, 230 anos depois, retroceder o relógio da História, contando com a bovina cumplicidade daqueles que, sorridentes, terão cassados esses direitos básicos e universais.

Paris, assim, foi acolhendo as diásporas dos perseguidos políticos. Alemães, austríacos,  tchecos, italianos, mas só enquanto a própria França, ela também, não viesse a sofrer os pavores da invasão nazista – episódio nada edificante no currículo de resistência dos franceses ao opressor. Walter Benjamin, entre muitos outros, tratou de escapar, mas acabou por se matar ao tentar atravessar para o lado de lá da fronteira espanhola.

Os adversários do franquismo, na Espanha, e do salazarismo, em Portugal, fizeram por décadas o caminho oposto ao que Benjamin buscara. E aí, nos anos 70, aconteceu a avalanche dos sul-americanos, brasileiros, uruguaios, chilenos, argentinos, todos na linha de tiro dos sanguinolentos regimes fardados. O acolhimento não vinha apenas de uma eventual afinidade política; ele vinha do coração de um povo de quem, todavia, se diz  desprezar os dons do sentimento. O da culpa faz de Paris, hoje, o reduto dos ex-colonizados da África Negra e do Maghreb.

L’amour. O beijo súbito captado por Doisneau é que exprime Paris.

Paris deixou milhares de exemplos, tais como o prodigalizado por Violette e Edgar Morin, então um casal. Os dois geriam um apetitoso curso – Sociologie des Communications – na École Pratique des Hautes Études , na 54 Rue de Varenne, ao lado de St. Germain. Os exilados das ditaduras batiam à porta e, mesmo sem a papelada exigida e as qualificações necessárias, ganharam dos Morin o acesso ao curso e um kit de sobrevivência em Paris: a Carte d’Étudiant facultava desconto no metrô e nos museus, e por 1,2 franco aplacava a fome da rapaziada num dos vários restaurantes universitários disponíveis em Paris.

A missão do asilo político sempre veio acompanhada, em Paris, da vocação de ser o regaço para artistas e intelectuais – quase sempre também perseguidos ou sufocados em seus talentos na pátria de origem. Paris foi inspiradora para Picasso, Giacometti, Dalí, Miró, Klee, os fugitivos da Bauhaus, a geração dos concretistas russos, Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Frans Krajcberg, um enxame de gênios expatriados que encontrou guarida na colina de Montmartre, em Montparnasse, em Saint-Germain, no Quartier Latin. Enquanto isso, os americanos Hemingway, Fitzgerald com Zelda e Christopher Isherwood promoviam sua versão frenética dos roaring twenties encharcando-se de bebidas nos cafés e buscando a bênção literária de Gertrude Stein, em desfile intermitente na casa da 27 Rue de Fleurus, que a poeta compartilhava com a sua Alice B. Toklas.

O contágio intelectual aguçou no parisiense o prazer do dissenso e o obstinado exercício do contraditório, levado a extremos, discussões em torno de minúcias aparentemente irrelevantes, mas que convocam paixões – sem jamais desqualificar o direito do interlocutor de ter sua opinião. Virtude das sólidas democracias. Convém lembrar que, desde a Revolução de 1789, existem na França esquerda e direita e, salvo momentos tenebrosos, costumam se respeitar. De todo modo, o espírito das facções chegou ao ponto de decretar, no caso dos dois lendários e rivais cafés de Saint-Germain, que o Flore é de esquerda e o vizinho Deux Magots, para estrangeiros deslumbrados.

O Flore convida a outros beijos e a papo-cabeça de esquerda

Um derradeiro mas persistente mito que faz sombra sobre a genuína Paris dos parisienses – e, agora, de Lula também – exagera seu pendor libidinoso e devasso, como um painel pintado por Toulouse-Lautrec num cabaré de Pigalle. Paris cultiva um erotismo sem escândalo, nada a ver com o estrépito antigo do cancã e das contrafações enganosas do presente, o Lido, o Crazy Horse e o Moulin Rouge, feitos para turista ver. Paris é a cidade do amor discreto e sussurrado, mas pleno e livre, como o que o provinciano Frédéric Moreau encontrou, pelas mãos de Gustave Flaubert, na Educação Sentimental.

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