Cultura

assine e leia

Cem anos de inquietação

Evocar Franz Kafka no centenário de sua morte é uma forma de celebrar a existência de um autor que jamais buscou o consenso ou o conforto

Cem anos de inquietação
Cem anos de inquietação
Kafka morreu em um sanatório perto de Viena, na Áustria, em junho de 1924, em decorrência da tuberculose – Imagem: Atelier Jacobi/Bodleian Libraries/Universidade de Oxford
Apoie Siga-nos no

E possível dizer que cada época inventa seu próprio Franz Kafka, com as ferramentas que tem à mão. Em 1951, Jorge Luis Borges fala de Kafka a partir de seus precursores, ou seja, de como sua obra é um ponto possível dentro de uma constelação de outros textos, em um arranjo sempre móvel. Em 1975, Deleuze e ­Guattari falam da “literatura menor” de ­Kafka, espécie de experimento político que visa enfraquecer as fundações do poder estabelecido – bem como seus discursos, gestos e hábitos.

Duas décadas mais tarde, em 1995, Sander Gilman apresenta Kafka como o “paciente judeu”, articulando a história de seu corpo e sua doença, a tuberculose, com o clima antissemita de sua época. Mais recentemente, em 2011, Pascale Casanova fala de um Kafka Indignado – título do livro que acaba de sair pela Edusp –, um homem em estado de permanente inquietação diante das demandas políticas, sociais, amorosas e familiares.

Nossa época pode comemorar o centenário do autor e, talvez, refletir sobre a ambivalência de sua fama. Apesar da multiplicidade de leituras possíveis, a obra de Kafka apresenta-se, majoritariamente, sob o signo do desconforto e da inadequação, como fica claro quando acompanhamos alguns de seus personagens.

Temos, por exemplo, um homem que acorda transformado num inseto monstruoso (A Metamorfose); um morto-vivo que fala com tranquilidade de suas viagens intermináveis (O Caçador Graco); e um macaco falante que tenta convencer uma audiência difícil de que sua existência é possível (Um Relatório para Uma Academia).

O que, nessas histórias, mantém a atenção e o interesse dos leitores, mesmo depois de cem anos da morte do autor? Os relatos de Kafka são, ao mesmo tempo, enigmáticos e arejados, concisos e estimulantes. Ou seja, permitem que o leitor utilize a própria imaginação para suprir as lacunas, arriscando, inclusive, uma projeção autobiográfica em direção ao texto – como eu me comportaria se acordasse transformado em um inseto, ou se encontrasse na minha frente Josefina, a rata cantora?

Kafka Indignado, recém-lançado no País, mostra um artista em constante embate com o entorno

No que diz respeito à fama póstuma de Kafka, é preciso enfatizar que a obra não existe sem a vida: seus diários e as cartas para suas quatro noivas (Felice, Julie, Milena e Dora) mostram que os detalhes biográficos são sempre registrados a partir de uma visão de mundo peculiar, única, “kafkiana”.

“Hoje sonhei com um asno parecido com um galgo e muito contido em seus movimentos”, escreve ele em 29 de outubro de 1911, completando: “Seus pés humanos e estreitos não me agradavam”. Ou a entrada de 2 de agosto de 1914, uma das mais famosas dos diários: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, natação”. Nesse vasto conjunto de registros, Kafka surge, paradoxalmente, como um homem comum, gente como a gente, inseguro, apaixonado, aguentando um trabalho enfadonho, convivendo com pessoas que não suporta.

Quando morreu em um sanatório perto de Viena, na Áustria, em junho de 1924, em decorrência da tuberculose, Kafka não tinha como saber da proporção que sua obra tomaria ao longo das décadas. Suas ficções fascinaram também outros grandes escritores – Elias Canetti, Cynthia Ozick, Ricardo Piglia –, gerando um encadeamento de excelentes comentários, fazendo a literatura circular para além das fronteiras geográficas e linguísticas.

Evocar Kafka no centenário de sua morte é uma forma de celebrar a existência de uma literatura que não busca consenso ou conforto, fugindo da facilidade e das posições fixas. Como ele próprio postula na fábula intitulada Prometeu: “A lenda tenta explicar o inexplicável”. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Francisco Bosco – ensaísta, influencer e parceiro do pai, João Bosco, como letrista – condensa seus pensamentos sobre a contemporaneidade e a existência nos divertidos e provocadores aforismos e breves textos contidos em Meia Palavra Basta (Record, 128 págs., 54,90 reais).

Residente na França, Scholastique ­Mukasonga recupera a memória da Ruanda natal nos tempos do domínio belga em ­Kibogo Subiu ao Céu (Nós, 168 págs., 75 reais). Uma das buscas da narrativa é, justamente, dar forma às lutas íntimas e coletivas contra a colonização e a evangelização.

Escrito logo após A Cor Púrpura (1983), O Templo dos Meus Familiares (José ­Olympio, 518 págs., 99,90 reais) é um livro menos célebre de Alice Walker, mas não menos ambicioso. O romance, definido pela autora como uma história “dos últimos 500 anos”, ganhou nova tradução no Brasil.

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cem anos de inquietação’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo