Cultura
Cem anos de ilusões
Luiz Ruffato cria uma saga familiar para, por meio dos insucessos íntimos, mostrar o fracasso do próprio Brasil


O país do futuro. Assim o Brasil foi por muito tempo representado. O futuro aparecia como o horizonte em que as mazelas do passado e do presente estariam remediadas. Cedo ou tarde, o Brasil estaria fadado a tornar-se o que o destino lhe reservava: o país do progresso, do desenvolvimento que, enfim, nos libertaria de nossa trágica herança histórica.
Hoje, a ideia de um futuro promissor para o país do “sonho intenso” não convence mais. O futuro já é o presente e nos revela que, ao menos no curto ou no médio prazo, teremos muito passado pela frente. É nessa complexa trama de temporalidades que navega O Antigo Futuro, o mais recente livro de Luiz Ruffato, um dos mais originais escritores da literatura brasileira contemporânea.
O romance explora, em sua forma vertiginosa, com cem breves capítulos, algumas das múltiplas camadas do Brasil dos séculos XX e XXI. Ruffato nos mostra um país cuja fratura social não apenas se manteve, como também foi ganhando novos contornos à medida que avançava no seu processo de “modernização”.
Mas a estrutura do livro não vai do passado ao futuro, como seria o mais previsível. Seu ponto de partida é o presente, a partir do qual o “antigo futuro” vai sendo esquadrinhado, paralelamente à apresentação, em sentido cronologicamente inverso, da sequência de gerações da família Bortoletto.
A narrativa começa pelo rebento mais novo, Alex, jovem imigrante precarizado nos Estados Unidos, país para onde migrara em 2016, depois do assassinato do irmão e do cunhado em um assalto na lanchonete familiar.
O ANTIGO FUTURO. Luiz Ruffato. Companhia das Letras (224 págs., 69,90 reais)
As gerações que antecederam Alex conheceram, ainda que aos trancos e barrancos, a esperança de ascensão social. Mas as histórias do bisavô, que trouxe a família italiana ao Brasil, em 1916, do avô, que foi com os seus às Minas Gerais, e do pai, que os fez desembarcar em São Paulo, teriam um desfecho nada redentor, metaforizado na mudança financeiramente forçada de Alex para os EUA.
Passado o breve parêntese recente em que o Brasil “engrenara e tudo parecia fluir”, “Alex já não conseguia olhar para o futuro, pois sabia que não há nada lá”.
Como em outros livros do autor, o relato se dá em linguagem franca e direta, denotando – ao contrário do que pode parecer à primeira vista – uma construção formal refinada, capaz de reconstituir, no plano literário, aspectos decisivos da dinâmica histórico-social que lhe serve de referência. Terá, porém, as expectativas frustradas o leitor que esperar encontrar na prosa de Ruffato alguma empatia melodramática.
Se a rememoração literária efetuada no romance não esconde a simpatia pelos “de baixo”, seu potencial crítico reside, antes, no modo como um desenrolar familiar é mimetizado na própria trajetória do País. Somos, dessa forma, obrigados a encarar não apenas o sentimento amargo dos fracassos pessoais, mas um insucesso que é histórico e social.
Daí o primado do presente, à luz do qual somos defrontados com os limites do passado – em especial, quando visto pela perspectiva daqueles para quem o futuro “precisava” ser melhor.
É em torno desses vencidos pela vida – cujas grandezas e misérias são explicitadas pelo escritor mineiro – que a expectativa de um país diferente poderá voltar a florescer. Mas a crença em um futuro radiante se desfez. A verdadeira transformação, se vier a ocorrer, implicará uma mudança da própria rota da história, fazendo, aí sim, com que o futuro almejado se torne o próprio presente. •
*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia na Unicamp.
VITRINE
Por Ana paula sousa
A onipresença das imagens em nossa existência tecnológica reforça a agudeza de Modos de Ver, obra do crítico de arte John Berger agora reeditada pela Fósforo (192 págs., 84,90 reais). “A visão precede a palavra”, preconizava Berger, 50 anos atrás, no primeiro dos ensaios do livro.
Foi na Ilha de Moçambique que a escritora gaúcha Taiane Santi Martins colheu as memórias femininas – marcadas pela violência e pela ancestralidade – presentes em Mikaia (Record, 272 págs., 54,90 reais), romance vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2022.
O professor de Filosofia que protagoniza Quando os Pássaros Voltarem (Intrínseca, 544 págs., 99,90 reais), do espanhol Fernando Aramburu, acaba de marcar a data do seu suicídio. Entre o amargor e a ironia, ele revela-se uma figura-espelho das aflições contemporâneas.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1247 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Cem anos de ilusões”
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