Cultura
Casa tomada
Por meio de um romance gótico feminino, Layla Martínez narra os horrores da Guerra Civil Espanhola


Mais de uma característica faz com que Cupim, arrebatador romance da espanhola Layla Martínez, possua uma ligação direta com a literatura latino-americana – tanto a contemporânea quanto a clássica.
A primeira delas é o diálogo com o conto Casa Tomada, do argentino Julio Cortázar (1914–1984), no qual um casal de irmãos vive em uma casa que, aos poucos, é ocupada por uma força invisível que os leva a abandonar o lugar.
A metáfora da opressão política na Argentina levou o autor ao exílio no ano de publicação do conto, um símbolo do realismo fantástico.
Layla Martínez, da mesma forma, usa uma casa tomada pelo oculto para fazer uma alegoria do passado do seu país, mais especificamente aquele da Guerra Civil Espanhola (1936–1939). No livro, o passado surge como assombração em uma casa retratada em diferentes tempos no interior espanhol.
A segunda característica a conectar Cupim à ficção sul-americana é a atmosfera de horror. Esse clima remete à produção de autoras contemporâneas como as argentinas Samanta Schweblin e Mariana Enríquez.
Mas, embora ecoe colegas latinas, a autora espanhola constrói algo muito particular nesse romance que pode ser definido como um gótico feminista e que traz embutido um protesto ligado à consciência de classe.
“O dinheiro é sempre melhor o dinheiro dá a todas as coisas uma camadinha de óleo que faz com que nada fique rangendo com que tudo se encaixe em seus lugares cliquecliqueclique todas as peças funcionando como devem funcionar sem que nada as desbarate nem se rompa nem se encaroce nem tropece”, diz uma das narradoras. “Os pobres passam a vida dando marteladas nas peças mas nem assim se encaixam.”
Cupim. Layla Martínez. Tradução: Joana Angélica d’Avila Melo. Companhia das Letras (120 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon
O trecho, além de evidenciar o conteúdo crítico da história, é um bom exemplo do estilo da autora, marcado pela oralidade; pela pontuação quase livre; pelo uso de onomatopeias; e pela descrição de imagens que denotam ideias.
Cupim é um livro polifônico, narrado por mulheres de uma mesma família, mas de diferentes gerações. A alternância entre as narradoras vai dando pistas sobre um mistério que abala o povoado onde vivem, um lugar marcado por crenças em feitiços e santos.
O cupim do título poderia ser o inseto que consome casas velhas – em espanhol, carcoma, um inseto distinto do cupim, mas que também se alimenta de madeira.
Layla Martínez usa-o, contudo, como símbolo de um desejo de vingança: “Ao acordar tinha dentro de mim um cupim que não sei se as sombras o meteram ali entre sussurros no meio da noite ou se me veio por conta própria à cabeça”. •
Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Casa tomada’
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