Cultura

Cantos de trabalho resistem em comunidades do sertão na Bahia

Batas, bois e cantigas sobrevivem na vida de trabalhadores rurais e são importantes para demonstrar alegria e dar ritmo ao trabalho pesado

Dupla de cantadores de boi de roça, Braz e Antônio Fumenga, da comunidade Lagoa da Camisa, em Feira de Santana, na Bahia Foto: Sandro Santana
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O documentário Cantos de trabalho: Bois, batas e cantigas (52 min) é uma referência para entender o que representa essa tradição nas comunidades de Lagoa da Camisa, Boa Vista e Licuri. Nele, há depoimentos, performances dos tipos de cantos, a presença dos arquivos “vivos” da cultura e a importância da participação das mulheres.

Seu idealizador, Sandro Santana, diz que as cantigas, com versos tradicionais e de improviso, estão presentes no trabalho de colheita e no cotidiano, como lavar roupas e cozinhar, ainda que de forma restrita. Os temas tratados, em geral, são do universo do passado e do presente vivenciado.

“Os cantos das batas são entoados em momentos de colheita e incluem homens, mulheres e até mesmo crianças, que com os pés ajudam a manter unidos os sabugos e vargens que se dispersam. São canções alegres e festivas”, explica Santana, há mais de 20 anos envolvido na pesquisa com lavradores da região.

As batas possuem marcação rítmica com o uso dos porretes de madeira para descascar o feijão e descaroçar o milho. Tem também a importância de celebrar a colheita.

Já os bois são cantos de preparo da terra e plantio com foice e enxada, embaixo do sol, que ajudam a manter o ritmo, mas que são mais introspectivos e repetitivos. Podem ser executados por horas. “Raramente são entoados em outros momentos, ao contrário das cantigas e dos batuques”.

O pesquisador explica que muitos desses cantos hoje se restringem a famílias e agrupamentos menores, porque as plantações são pequenas e não se exige mais os mutirões de lavradores para a roçada, plantio e colheita, como ocorria no passado.

A criação de grupos, como o Quixabeira de Lagoa da Camisa, em Lagoa da Camisa, e Pavão Dourado, em Boa Vista 2, mantém os cantos presentes de forma lúdica e adaptada para apresentações públicas.

“Nas apresentações desses grupos predominam a chula, samba de roda, cantigas e, em menor grau, o boi. Até mesmo porque estão cada vez mais raros os cantadores de boi e não há uma renovação, o que é compreensível até mesmo pelo rareamento desta manifestação”, conta Santana.

Imagem aérea da Comunidade Lagoa da Camisa, em Feira de Santana, na Bahia

Apagamento

Embora haja registros de cantos de trabalho de forma escrita, gravada e audiovisual, o pesquisador conta que há ainda muito a ser feito. “Durante a gravação do documentário [realizada entre o final do ano passado e início deste], surgiram vários novos cantos que, infelizmente, por conta de contratos, os registros ficaram em posse de produtoras e não acredito que teremos acesso a eles, até mesmo porque quem os detém não possui a menor ideia do que se trata”.

Santana afirma que a política contra o apagamento teve um ensaio importante nos primeiros anos do governo do ex-presidente Lula, mas “depois foi entrando num crepúsculo que levou a este momento de tragédia e orgulho da ignorância pelo qual estamos passando”. Para ele, a disponibilização dos conteúdos em plataformas públicas com acesso gratuito e universal é fundamental para a preservação.

“Os maiores aliados para a manutenção dos cantos, mais do que isso, destas culturas, são as escolas destas comunidades. Utilizar estes registros e trazer os mestres para palestras e oficinas nas salas de aula é fundamental para a autoestima e a continuidade”, avalia.

Cantiga de roda na Comunidade de Licuri, em Ichú, na Bahia

O grupo da Quixabeira de Lagoa da Camisa, em Feira de Santana, com cerca de dez integrantes, que já fez apresentações no Rio de Janeiro, em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e tem agenda fixa na Bahia, possui grande dificuldade para a sua renovação.

“A proximidade com Feira de Santana é um dos motivos, pois os mais jovens estão em contato com uma grande cidade e olham pra sua cultura como símbolo de atraso, não se reconhecem na sua cultura ancestral e, por outro lado, são rechaçados nos centros urbanos trabalhando em subempregos”, diz. “Outro ponto é a disseminação de igrejas evangélicas [avessas à prática]”.

Já o Pavão Dourado, de Boa Vista 2, em Serrinha, na sua terceira geração, é um dos pilares da manutenção da cultura local. Trata-se de um grupo de cantigas de roda formado por nove mulheres e um homem e tem presença marcante na comunidade.

Em Licuri, no município de Ichú, existe uma tradição também forte de cantigas de roda e a escola é um espaço disseminador da cultura. São exemplos vivos de um Brasil que resiste ao desmonte cultural e da memória.

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