Cultura

Calmo e dilacerante

Os meninos da foto dormiam nos respiradouros quentes do metrô, enquanto uma garoa fina começava a cair

A imagem. Meninos de rua dormem na calçada no centro de São Paulo. Miserere. Foto: Oliveiro Pluviano
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Por Oliveiro Pluviano

Tirei esta foto em uma manhã de inverno na Avenida São Luís, no centro de São Paulo. Alguns meninos de rua dormiam nos respiradouros quentes do metrô, enquanto uma garoa fina começava a cair. Transformei a foto em um pôster que dei de presente a Mino Carta e, agora, em uma moldura vermelha, está na redação de CartaCapital. É uma imagem muito triste, simboliza as misérias que ainda afligem este nosso Brasil. O Miserere Mei, Deus (Tende piedade de mim, Deus) de Gregorio Allegri (1582-1652) é o leitmotiv perfeito para esta cena calma e dilacerante. Este trabalho do sacerdote romano, filho de um cocheiro milanês, é reconhecidamente uma das obras-primas da polifonia renascentista.

A essência excepcional dessa obra vem principalmente do agudo, quase um grito de dor, de difícil execução, cantado por uma soprano ou uma criança por quatro vezes, depois de uma parte confiada a um ou dois intérpretes de canto gregoriano. No YouTube procurem a versão dos Tallis Scholars na igreja romana de Santa Maria Maggiore, que usam três coros de cinco, duas e quatro pessoas, com o som mais alto confiado a uma mulher. Ou também aquela do Kings College Chapel Choir com a voz de um menino.

O papa Urbano VIII compreendeu imediatamente as qualidades surpreendentes dessa composição quando Allegri apresentou-a a ele por volta de 1630. Foi executada para as Tenebrae, a cerimônia religiosa que se realizava antes do amanhecer nos últimos três dias da Semana Santa. Quinze velas eram apagadas, uma após a outra, depois da leitura dos Salmos. A derradeira ficava escondida atrás do altar, deixando a igreja na mais completa escuridão, tenebro em latim. O trepidar que se seguia era impressionante: cada um dos presentes começava com os pés, com objetos de madeira, com papel, a fazer um barulho crescente, até chegar ao fragor terrível, a simbolizar o terremoto que sobreveio à morte de Jesus. Mas a vela atrás do altar trazia de volta a luz e a paz, como Cristo com sua ressurreição.

O Miserere de Allegri foi executado na Capela Sistina, no Vaticano, todos os anos nas noites da Quarta-Feira de Cinzas e da Sexta-Feira Santa, sem interrupções por quase 250 anos, até 1870. A obra era considerada sagrada: o papa proibiu a transcrição da partitura e também sua execução fora da capela afrescada por Michelangelo, sob pena de excomunhão. Testemunhos da época reportam que a versão musicada de Allegri atingia na Sistina um efeito de sugestão fantástico, que superava em muito a partitura.

A execução única no mundo era confiada a cantores que implementavam variações, cadências e ornamentos, transmitidos de maestro a maestro, com acréscimos inusitados, para tornar a composição irreconhecível quando comparada com a interpretação original. Mas, na quarta-feira 11 de abril de 1770, um austríaco de 14 anos, em visita a Roma, ouviu o Miserere na Sistina. Seu nome era Wolfgang Amadeus Mozart e, fotografando-o com sua excepcional memória musical, o reproduziu facilmente nas linhas de um pentagrama. Seu pai, Leopold, escreveu em uma carta que “em Roma muitas vezes se ouve falar do famoso Miserere, cuja elevada consideração proibia os músicos da capela de levar para fora até uma pequena parte. Mas nós conseguimos. Meu filho o transcreveu de memória e em breve enviaremos a partitura para Salzburgo. Não há o menor motivo para se preocupar, pois toda a Roma e o próprio pontífice o sabem. A iniciativa, ao contrário, rendeu a Wolfgang uma grande reputação”.

Depois dessa bravata de Mozart, a excomunhão foi retirada. O Miserere de Allegri foi executado novamente, após 141 anos, para o papa Bento XVI, no dia 9 de março do ano passado na basílica romana de Santa Sabina, durante a celebração da Quarta-Feira de Cinzas.

Por Oliveiro Pluviano

Tirei esta foto em uma manhã de inverno na Avenida São Luís, no centro de São Paulo. Alguns meninos de rua dormiam nos respiradouros quentes do metrô, enquanto uma garoa fina começava a cair. Transformei a foto em um pôster que dei de presente a Mino Carta e, agora, em uma moldura vermelha, está na redação de CartaCapital. É uma imagem muito triste, simboliza as misérias que ainda afligem este nosso Brasil. O Miserere Mei, Deus (Tende piedade de mim, Deus) de Gregorio Allegri (1582-1652) é o leitmotiv perfeito para esta cena calma e dilacerante. Este trabalho do sacerdote romano, filho de um cocheiro milanês, é reconhecidamente uma das obras-primas da polifonia renascentista.

A essência excepcional dessa obra vem principalmente do agudo, quase um grito de dor, de difícil execução, cantado por uma soprano ou uma criança por quatro vezes, depois de uma parte confiada a um ou dois intérpretes de canto gregoriano. No YouTube procurem a versão dos Tallis Scholars na igreja romana de Santa Maria Maggiore, que usam três coros de cinco, duas e quatro pessoas, com o som mais alto confiado a uma mulher. Ou também aquela do Kings College Chapel Choir com a voz de um menino.

O papa Urbano VIII compreendeu imediatamente as qualidades surpreendentes dessa composição quando Allegri apresentou-a a ele por volta de 1630. Foi executada para as Tenebrae, a cerimônia religiosa que se realizava antes do amanhecer nos últimos três dias da Semana Santa. Quinze velas eram apagadas, uma após a outra, depois da leitura dos Salmos. A derradeira ficava escondida atrás do altar, deixando a igreja na mais completa escuridão, tenebro em latim. O trepidar que se seguia era impressionante: cada um dos presentes começava com os pés, com objetos de madeira, com papel, a fazer um barulho crescente, até chegar ao fragor terrível, a simbolizar o terremoto que sobreveio à morte de Jesus. Mas a vela atrás do altar trazia de volta a luz e a paz, como Cristo com sua ressurreição.

O Miserere de Allegri foi executado na Capela Sistina, no Vaticano, todos os anos nas noites da Quarta-Feira de Cinzas e da Sexta-Feira Santa, sem interrupções por quase 250 anos, até 1870. A obra era considerada sagrada: o papa proibiu a transcrição da partitura e também sua execução fora da capela afrescada por Michelangelo, sob pena de excomunhão. Testemunhos da época reportam que a versão musicada de Allegri atingia na Sistina um efeito de sugestão fantástico, que superava em muito a partitura.

A execução única no mundo era confiada a cantores que implementavam variações, cadências e ornamentos, transmitidos de maestro a maestro, com acréscimos inusitados, para tornar a composição irreconhecível quando comparada com a interpretação original. Mas, na quarta-feira 11 de abril de 1770, um austríaco de 14 anos, em visita a Roma, ouviu o Miserere na Sistina. Seu nome era Wolfgang Amadeus Mozart e, fotografando-o com sua excepcional memória musical, o reproduziu facilmente nas linhas de um pentagrama. Seu pai, Leopold, escreveu em uma carta que “em Roma muitas vezes se ouve falar do famoso Miserere, cuja elevada consideração proibia os músicos da capela de levar para fora até uma pequena parte. Mas nós conseguimos. Meu filho o transcreveu de memória e em breve enviaremos a partitura para Salzburgo. Não há o menor motivo para se preocupar, pois toda a Roma e o próprio pontífice o sabem. A iniciativa, ao contrário, rendeu a Wolfgang uma grande reputação”.

Depois dessa bravata de Mozart, a excomunhão foi retirada. O Miserere de Allegri foi executado novamente, após 141 anos, para o papa Bento XVI, no dia 9 de março do ano passado na basílica romana de Santa Sabina, durante a celebração da Quarta-Feira de Cinzas.

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