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Brasil, mostra a tua cara

Os três longas selecionados para o Festival de Berlim dizem muito sobre o País e sobre o que é realizar filmes aqui

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Álbum de família. Produzido por Vânia Catani e dirigido por Flávia Neves, Fogaréu traz à luz uma sociedade arcaica e real – Imagem: Universo Produção e MyMama
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Na terça-feira 15, quando ­Fogaréu for exibido no Zoo Palast, durante o 72º Festival de Cinema de Berlim, um Brasil arcaico e violento despontará na tela. Mas com ele despontará também um país que, a despeito dos golpes desferidos contra a cultura, teima em transformar as crises em arte.

“Estar no Festival de Berlim é sempre importante, porque é passar por um funil muito estreito, mas, neste momento, isso me parece ainda mais importante”, diz Vânia Catani, produtora de Fogaréu. “É a cultura brasileira chegando para o mundo por meio dos nossos filmes. Tenho dito que o cinema brasileiro não é nem mais resistência. É insistência mesmo.”

Fogaréu, filme de estreia da goiana Flávia Neves, foi selecionado para a mostra Panorama – fora da competição, o espaço mais prestigioso da Berlinale. Outros dois longas-metragens participarão do festival que foi aberto na quinta-feira 10 e se estenderá até o próximo dia 20.

São eles Mato Seco em Chamas, de ­Adirley Queirós e Joana Pimenta, e Três ­Tigres Tristes, de Gustavo Vinagre. Ambos estarão na mostra Fórum. Há, além disso, três curtas-metragens selecionados.

Eduardo Valente, delegado do Festival de Berlim no Brasil, conta que cerca de 75 filmes brasileiros se inscreveram na seleção. Esse número, antes da pandemia, chegou a 110 títulos. Embora tenha havido uma redução de 25% a 30% no total de inscritos, o número é inegavelmente alto.

“O cinema brasileiro não é nem mais resistência. É insistência mesmo”, afirma a produtora

Se o cinema passou os últimos três anos lidando com a crise da Agência Nacional do Cinema (Ancine), que gerou um represamento de recursos até o segundo semestre de 2021, como isso se explica?

“Tivemos a junção de duas crises distintas: a pandemia e a paralisação na Ancine. Mas, o que vemos é que tem uma boa quantidade de filmes ficando prontos”, diz Valente. “Temos hoje projetos filmados alguns anos antes de 2020, que passaram muito tempo na pós-produção. Isso aconteceu ou porque não tinham como estrear ou porque estavam esperando a liberação de recursos para a finalização.”

As trilhas percorridas pelos três longas-metragens escolhidos têm muito a dizer sobre o que tem sido fazer cinema no Brasil. Os filmes, além disso, se constituem como espelhos nos quais o País se vê – ou evita se ver. Não por acaso, todos têm fortes elementos documentais, ainda que retrabalhados pela composição dramática.

“Acho que esse projeto diz muito sobre como as coisas eram na política audiovisual brasileira”, afirma, quase como se pensasse em voz alta, Vânia, ao tentar reconstituir as etapas do projeto. Quando procurou Vânia, produtora de filmes como O Palhaço (2011), de Selton Mello, e Zama (2017), de Lucrécia Martel, a diretora mal tinha um portfólio. Tinha, porém, uma história fascinante na cabeça.

A semente de Fogaréu foi plantada por um edital de desenvolvimento de roteiros aberto em Goiânia. Em 2016, o projeto foi inscrito em um concurso do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), voltado a obras “com proposta de linguagem inovadora e relevância artística”. Não ganhou na primeira tentativa, mas levou na segunda. Pouco antes de ser rodado, em 2019, ganhou um dificílimo concurso do Centro de Cinematografia Francesa (CNC).

Fogaréu se passa na cidade de Goiás, antiga capital do Estado, onde pessoas neurodiversas, lá chamadas de “bobas”, foram, durante anos, adotadas por famílias ricas para fazerem serviços domésticos. O olhar narrativo sobre a realidade cruel se dá com o retorno à cidade da uma mulher que, na infância, fora “adotada” por uma dessas famílias. De uma sofisticada construção dramatúrgica emerge, de forma desconcertante, o Brasil do agronegócio, do patriarcado, do preconceito e da naturalização dos serviçais.

Já em Mato Seco em Chamas, o Brasil que surge na tela, a partir de um imaginário autêntico, é aquele do petróleo, dos encarcerados e da periferia. O projeto foi premiado em 2017 – na mesma linha do FSA na qual foi contemplado Fogaréu. Assim como Fogaréu, é uma coprodução internacional, feita com Portugal, por meio de um edital específico da Ancine.

Estéticas da crise. Mato Seco em Chamas, de Adirley Queirós e Joana Pimenta, e Três Tigres Tristes, de Gustavo Vinagre, serão exibidos na mostra Fórum – Imagem: Vitrine Filmes e Carneiro Verde Filmes

Inicialmente, a história incluía a presença de um vírus que tomava Ceilândia, no Distrito Federal, a partir do momento em que um grupo de pessoas foi explorar o petróleo da região. Entre a filmagem e a montagem, veio a pandemia. E o real suplantou a imaginação. “A pandemia é tão forte que nenhuma imagem ficcional que remetesse a essa ideia faria mais sentido”, diz Queirós, para explicar porque tirou as referências ao vírus.

O pano de fundo de Mato Seco em Chamas foram as notícias em torno do pré-sal. Os diretores imaginaram essa realidade sob a perspectiva da periferia do DF. “O petróleo é de nóis”, dizem os personagens. Queirós e Joana Pimenta, que é portuguesa, começaram a filmar em 2017, e seguiram até a posse de Jair Bolsonaro, quando, nas palavras dele, já se sabia que a esquerda tinha sido “nocauteada também em termos de linguagem”.

Rodado na cidade-satélite Sol Nascente, a RA XXXII, o filme tem motoboys e encarcerados como protagonistas. “É um filme bastante político, que absorve a tensão permanente entre essa cidade e Brasília. E ele absorve essa tensão”, descreve Joana.

Também Três Tigres Tristes, um retrato do universo queer em São Paulo, foi feito sob interferência direta do real. O filme começou a nascer em 2016, com uma abordagem bastante contemplativa. Mas,algum tempo depois, Vinagre decidiu estruturar o projeto de forma a adequá-lo aos requisitos do FSA.

Com o novo roteiro, o projeto tornou-se mais complexo, deixando de ser cinema de guerrilha. Em 2018, foi premiado e, em 2020, quando iam começar as filmagens, veio a pandemia.

A ida para o set só foi possível em agosto do ano passado, mas, então, as limitações do orçamento se fizeram sentir. A inflação e os custos com os protocolos sanitários obrigaram Vinagre a mexer novamente no roteiro e a contar com a colaboração de amigos que toparam trabalhar de graça.

Como Bolsonaro extinguiu o apoio oficial, Vinagre fez uma vaquinha para poder ir ao festival

“Decidi abraçar toda essa situação”, diz o cineasta. “O filme se passa na pandemia, com os atores usando máscaras, e acho que reflete esse estado de coisas meio confuso em que todos nos encontramos.”

Esta é a terceira vez que Vinagre é selecionado para Berlim. E a primeira em que vai sem apoio oficial. Na semana passada, ele fez um post nas redes sociais pedindo o auxílio de amigos para a viagem. “É uma alegria estar num festival dessa importância, mas, de repente, me peguei nessa situação, de ter uma viagem a trabalho, onde estarei representando o Brasil, e ter de pedir ajuda para poder fazê-la”, diz.

No dia seguinte ao post, a vaquinha já havia garantido a ele o mínimo necessário para se manter lá por alguns dias. A passagem de avião ele havia ganho do Projeto Paradiso, uma iniciativa filantrópica de apoio ao audiovisual brasileiro.

Tradicionalmente, os filmes selecionados para festivais representativos – ­Cannes, Veneza e Berlim à frente – recebiam um apoio oficial. A prática é comum em vários países e insere-se no conceito de soft power. O programa existente na Ancine foi extinto no governo Bolsonaro, e o Ministério das Relações Exteriores também está impedido de prestar auxílio.

Vânia, há duas décadas inserida no circuito internacional de festivais, também contou só com o Projeto Paradiso. “Espero que, até Cannes (em maio), a Ancine consiga reestruturar o departamento internacional”, diz ela, que, em 2021, apresentou, no festival francês, Medusa.

Cabe lembrar ainda que os vários acordos bilaterais e editais de coprodução que pavimentaram o caminho para a inserção da produção brasileira no circuito internacional do cinema de arte foram suspensos ou paralisados nos últimos três anos. De acordo com a Ancine, um novo edital de coprodução será lançado ainda este mês. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1195 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Brasil, mostra a tua cara “

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