Cultura

Billie Holiday, uma cantora à frente de seu tempo

Adjetivos como “ícone” e autêntica” não bastam para descrever a importância de “Lady Day”. Poucos conseguiram dar vida à música como ela: sua influência é sentida cem anos após seu nascimento

Retrato de Billie Holiday publicado na Downbeat Magazine, New York, 31 de janeiro de 1947
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Por Rick Fulker (pv)

“Ela tinha apenas 17 anos, um pouco acima do peso, perfeitamente bela e absolutamente desconhecida. E cantou como se realmente tivesse vivido [o que a canção dizia].” Assim o produtor musical John Hammond descreve seu primeiro encontro com Billie Holiday. Ele foi confrontado com a voz única dela em 1933, numa casa noturna em Nova York.

Na oportunidade, Hammond convidou a estrela emergente do jazz Benny Goodman a ouvi-la e o convenceu a colocá-la num estúdio da emissora americana CBS. Dali surgiram as primeiras gravações de Riffin ‘o ScotchYour Mother’s Son-in-Law. Billie Holiday não foi a única descoberta de Hammond, que promoveu astros como Bob Dylan, Pete Seeger e, posteriormente, Bruce Springsteen.

Na época, Billie Holiday não tinha treinamento musical: seu compasso era limitado, ela não sabia ler partituras e cantava principalmente baladas lentas. Suas únicas influências eram a cantora Bessie Smith e o trompetista Louis Armstrong, que ela ouvia em discos que tocavam no bordel onde trabalhava.

Billie Holiday nasceu em 7 de abril de 1915, na Filadélfia, como Eleanora Fagan e cresceu na cidade de Baltimore. Seus pais, na época adolescentes, nunca se casaram. O pai, Clarence Holiday, que viria a ser um músico bem-sucedido de jazz, mal a conhecia. A mãe, Sadie Fagan, dava pouca atenção à filha. Eleanora cabulava aulas na escola, foi encaminhada a um internato e lá foi estuprada, aos dez anos de idade. Mais tarde, trabalhou como prostituta no Harlem, reduto da comunidade negra em Nova York.

Em contraste com o sucesso nos palcos – que a levou ao Carnegie Hall, a uma noite de jazz no Metropolitan Opera House e a uma turnê europeia – Holiday vivenciou dois casamentos fracassados e duas detenções por abuso de drogas.

Ela morreu com apenas 44 anos de idade, vítima de cirrose hepática, causada pelo consumo excessivo de álcool, num hospital de Nova York – vigiada e algemada na cama por policiais do departamento de combate ao narcotráfico. Ela tocou com todos os grandes nomes do jazz de seu tempo. No entanto, nem o amor de milhões de fãs fez dela rica: houve debate até sobre quem deveria arcar com os custos de seu enterro.

Foi uma vida curta, mas com surpreendente produtividade, com centenas de gravações e inúmeras apresentações. Depois do início cambaleante por bares chamados de Speakeasy – estabelecimentos ilegais que comercializavam bebidas alcoólicas durante a lei seca nos Estados Unidos – a sua carreira decolou, de fato, em 1935.

Em sessões de gravação com Teddy Wilson, membro da banda Benny Goodman Trio, uma pequena equipe de músicos deveria regravar clássicos da música para uma recém-formada indústria de máquinas de jogatina. As gravações tiveram um sucesso limitado, como Hammond recordaria posteriormente:

“Com Billie era problemático. Musicalmente ela estava muito à frente de seu tempo. Por tomar a liberdade na entonação de palavras e melodias, ela não era um xodó das gravadoras, então autoritárias. A primeira apreciação genuína por Billie Holiday não veio de críticos musicais americanos, mas de europeus.”

A cantora encontrou palavras que definem a sua própria técnica vocal em sua autobiografia Lady Sings the Blues, publicada em 1956: “Não me parece cantoria. É mais um sentimento, como se eu fosse tocar um instrumento de sopro. Eu tento improvisar como Les Young, como Louis Armstrong ou qualquer outra pessoa que eu admiro. Eu odeio simplesmente cantar. Eu preciso transformar uma melodia a fim de reproduzi-la em sua própria maneira. Isso é tudo o que eu sei.”

E isso foi o suficiente. A cantoria – que não era uma – se misturava sutilmente com o estilo improvisador de outros músicos: a partir de 1936 com Les Young – que lhe deu o seu famoso apelido de “Lady Day” –; em 1937, com Count Basie; e de 1938 em diante, com Artie Shaw.

Direitos civis

Os sucessos, porém, estavam sempre acompanhados por uma enorme desvantagem: assim como milhões de outros negros, Billie Holiday também sofreu com a discriminação racial. Por causa da cor de pele um pouco mais clara, ela teve que passar maquiagem para um concerto com Count Basie: uma cantora “branca” que se apresenta com um músico negro teria sido um escândalo.

Holiday desafiava os estereótipos. As performances com Artie Shaw foram as primeiras de uma mulher negra com uma banda composta por brancos. A cantora, no entanto, só podia usar a entrada dos fundos para o palco e estava proibida de comer com os outros músicos. O sucesso, porém, estava então imparável. Logo, ela estava se apresentando como Billie Holiday and her Band. Em 1947, participou de um filme com o ídolo Louis Armstrong – mas não como ela própria, mas no papel de uma empregada.

Com a canção Strange Fruit, que ela cantou a partir de 1939, Holiday anunciou seu combate direto contra a discriminação. A sonorização de um poema de Abel Meeropol era um testemunho chocante sobre a cultura do de linchamento, então espalhada pelos estados sulistas dos EUA. A gravadora Columbia classificou a música como muito arriscada: até mesmo Hammond recusou a canção.

Posteriormente, a gravadora Commodore pegou a música, que viria a ser o maior sucesso da carreira de Holiday e a fez um ícone na esquerda americana e um fenômeno social. Como símbolo do movimento dos direitos civis dos negros, Strange Fruit foi nomeada a “música do século” pela revista Time, em 1999.

Em 1959, cinco meses antes de morrer, Holiday fez uma de suas últimas apresentações na televisão americana cantando Strange Fruit. O vídeo mostra também as imagens dos negros Laura e L. D. Nelson, linchados em 1911, que na época chegaram a ser impressos como cartões postais e vendidos a turistas.

Hoje, músicas que foram compostas para Holiday ou até coescritas por ela, como Lover ManHush Now, Don’t Explain ou Long Gone Blues, são tão conhecidas como em sua época. Mas ela também deu seu caráter distintivo a muitos clássicos, como You Go to My Head ou I Can’t Get Started, de George Gershwin.

Ao lado das flores brancas, que “Lady Day” usava no cabelo, a articulação sutil e o jeito de frasear eram suas marcas registradas. E mesmo quando nos últimos anos a sua voz se tornou mais áspera, Billie Holiday lhe deu uma magia rítmica. Ela não cantava “em cima”, mas um pouco “depois” da batida, não atingia diretamente o ritmo, mas o ludibriava e lhe dava certo suspense.

Além da técnica de canto, foi principalmente a intensidade de suas apresentações que fizeram de Billie Holiday um modelo para inúmeros cantores. A receita, dizia ela, era simples: “Cantar músicas comoThe Man I Love ou Porgy não é mais trabalho do que sentar numa mesa e comer um pato chinês – e eu adoro pato chinês. Eu vivi músicas como estas.”

Em 1973, o crítico americano de jazz Ralph Gleason a define da seguinte forma: “Ela foi a maior cantora de jazz de todos os tempos. Quem hoje faz jazz e é mulher, canta algo de Billie Holiday. Não tem como ser de outro jeito. Não há cantora que não tenha sido influenciada por ela.”

Billie Holiday Billie Holiday nasceu em 7 de abril de 1915, na Filadélfia, como Eleanora Fagan e cresceu na cidade de Baltimore

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