Cultura
Bem antes das hashtags
Começar um livro pelo índice é, para Dennis Duncan, como entrar em um palácio pela latrina. Mas é a eles que o pesquisador dedica seu tempo


Um índice é uma ferramenta esdrúxula: ele nos permite entrar furtivamente em um livro pelo final, economizando o tempo que levaríamos para avançar no texto desde o início. Jonathan Swift, citado por Dennis Duncan em Índice, Uma História do, seu espirituoso e amplo estudo sobre o assunto, compara os leitores que usam esses atalhos a viajantes que entram em um palácio pela latrina.
Em duas outras anedotas, Duncan identifica o índice remissivo como um esconderijo conveniente para acadêmicos traidores. Na década de 1690, uma facção sarcástica da Christ Church, em Oxford, difamou o grande filólogo Richard Bentley imitando um índice que remetia a páginas sobre “sua iminente monotonia” ou “seu relacionamento familiar com livros que nunca viu”.
Essa diversão erudita ajuda ainda a passar o tempo em nossas antigas e confusas universidades. O historiador Hugh Trevor-Roper, que viveu alguns anos difíceis na década de 1980 como mestre do Peterhouse College, em Cambridge, vingou-se de seus detestados colegas no índice de um livro de ensaios, no qual direciona os leitores para “Peterhouse: conversa não muito agradável na mesa de honra” e para a “principal fonte de pervertidos”.
Os vingativos podem aproveitar oportunidades como essa, porque a indexação é arbitrária e anárquica. Os textos são cortados e as escolhas sobre o que merece ser enfatizado podem ser perniciosas. Seguindo a ordem alfabética, diz Duncan, o índice passa do conteúdo à forma, do significado à ortografia.
“O alfabeto é um ótimo nivelador”, escreve o autor, e liberta o indexador para dar saltos associativos. Um exemplo é a Tabula distinctionum compilada pelo filósofo escolástico do século XIII Robert Grosseteste, uma ferramenta de busca chamada por Duncan de “Google em pergaminho”.
A máquina de buscas de Grosseteste trazia todas as letras dos alfabetos grego e romano, sinais matemáticos e variações dos símbolos do zodíaco, além de pontos, barras e curvas adicionais. “Cada livro”, relata Duncan, “era decorado com essas notas pictóricas, milhares de glifos descendo as margens como cascatas de emoticons.”
Índice, Uma História do Dennis Duncan. Tradução: Flávia Costa Neves Machado. Fósforo. (328 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon
Tal e qual o Google, a Tabula atrai os leitores para um universo em constante expansão, caótico e indiscriminado. Supõe-se, inclusive, que o nome Grosseteste deriva de seu apelido: grosse tête, que significa, em francês, cabeça grande.
Na esperança de regular essa dispersão frenética, o índice, muitas vezes, pretendeu ser moralmente útil. Começou como uma conveniência para os pregadores medievais, que precisavam ter fácil acesso às citações bíblicas. O catálogo de livros heréticos da Igreja Católica era conhecido, simplesmente, como O Índice. Em Hamlet, Gertrude rechaça o ataque irado de seu filho perguntando por que ele “troveja no índice”.
Samuel Richardson, em 1755, anexou um índice de “sentimentos instrutivos” ao seu enorme romance Clarissa. Como uma medida corretiva tardia, o índice garantia que a leitura da longa agonia erótica da heroína tivesse algum benefício educacional. O índice do já imenso romance tem 85 páginas e as entradas são organizadas em categorias como “Dever, Obediência” e “Conselhos e Cuidados às Mulheres”.
A lista de indexadores na literatura inclui Lewis Carroll, Virginia Woolf e Vladimir Nabokov, mas muitos romancistas admitiriam ser a empreitada imaginativa e amoral. O índice de Carroll em Algumas Aventuras de Silvia e Bruno tem uma entrada sobre “sobriedade, extrema, inconveniência da” e outra sobre “fadas, como melhorar o caráter das”.
Duncan encontra Virginia Woolf fazendo uma piada maliciosa sobre Orlando, na qual ela mitifica a vida de sua amante, Vita Sackville-West. Enciumada da “libido errante” de Sackville-West, Virginia alertou-a para “procurar Pippin no Índice e ver o que vem a seguir”. Detalhe: a entrada a que se refere não existe no livro.
Embora espirituoso, Duncan não ignora a atual preocupação com as pesquisas online instantâneas, que reduziram nossa capacidade de atenção e tornaram a memória redundante. Esse novo e escorregadio modo de leitura e aprendizado permite que a tecnologia decifre o mundo para nós.
Índice, Uma História do tem o subtítulo Uma Aventura Livresca, dos Manuscritos Medievais à Era Digital. Duncan é, certamente, livresco. E é também aventureiro, muitas vezes escrevendo como se a pesquisa acadêmica fosse tão acelerada quanto uma corrida de Fórmula 1.
Em seu estado mais enlevado, ele fica academicamente ébrio com o “o cheiro doce de mofo dos manuscritos de couro medievais” e vivencia o “sublime arquivístico” ao ter em mãos um sermão impresso em 1470 e encontrar nele uma letra que o deixa “à beira das lágrimas”.
O motivo da epifania? O que parece ser um J maiúsculo é, na verdade, o número 1, o que significa que ele está olhando para “o primeiro número de página impresso”. Esse arrebatamento revela que Duncan deve ter herdado sua vocação dos sacerdotes estudiosos que compilaram os primeiros índices. Para o verdadeiro devoto da literatura, todo livro é potencialmente sagrado. •
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1301 de CartaCapital, em 13 de março de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bem antes das hashtags’
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