Cultura
Beleza interior
Passar um fim de semana longe de São Paulo é fazer uma viagem via túnel do tempo


Sou um ser urbano. Daqueles que mora numa selva de pedra, cheira fumaça de gasolina, corre dos automóveis para não ser atropelado, enfrenta fila de espera no restaurante e acha bonito o que é feio nas paredes da cidade.
Quando pequeno, tinha um pé no galinheiro. Cuidava das minhas galinhas, dos patos, das codornas e dos perus. Regava as taiobas da minha mãe e comia jabuticabas no pé. Guardava o meu bodoque, andava descalço e me equilibrava em muros, mesmo aqueles com cacos de vidro pra espantar ladrões.
De tempos em tempos, volto ao interior para abastecer minha alma de jornalista e escritor. Recarregar a munição para enfrentar a guerra diária por aqui. Foi o que aconteceu na semana passada quando pegamos a estrada com destino à felicidade.
Foi lá que revi lojas com nomes de A Favorita, A Noiva Moderna e A Barateira. Vi homens de chapéu sentados na mesma praça, no mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Não consegui captar o que conversavam, enquanto o sol atravessava a cidade de cabo a rabo, do nascente ao poente.
É em cidades assim que a gente ainda vê ruas calçadas com pedras irregulares, casinhas coloridas, a Oficina do Baiano, a Farmácia do Djalma e placas como Miudezas em Geral, Secos e Molhados e Servimos Prato Comercial. São cidades cheias de Bar & Lanches, cidades onde os nomes do comércio continuam simplórios: Padaria Dois Irmãos, Dora Modas ou Mecânica Irmãos Reis.
não que a modernidade não tenha chegado por aqui. As pessoas olham sem parar as telas dos seus smartphones e escrevem mensagens com uma rapidez que eu, apesar de exímio datilógrafo, diplomado, nunca consegui.
Os shoppings centers com o Boticário, o Starbucks, a Side Walk, o Spoleto e a Vivenda do Camarão ainda não chegaram por aqui porque Cunha e São Luiz do Paraitinga não comportam. Ainda bem.
É em cidades assim que as famílias ainda colam nos postes os avisos de morte. Fiquei sabendo que Serafim Matoso morreu aos 81 anos e que o enterro seria daqui a pouco no Cemitério da Cidade. O único.
Um fim de semana em Cunha, passando por São Luiz do Piraitinga não é apenas sair de São Paulo. É uma viagem à infância. De repente me vejo espiando na janela de uma casa para ver se, lá dentro, ainda enxergo a foto do casal, colorida à lápis, dependurada na parede da sala.
Se a televisão ainda é em preto e branco e alguém está mexendo no botão do horizontal. Se nos armazéns de secos e molhados, de miudezas em geral ainda encontro bombas de Flit, Mirinda Morango, o pirulito de chocolate da Kibon, fósforos marca Olho, drops Dulcora, sabonetes Myrugia, um espiral para matar pernilongos ou uma caixa de Modess Pétala Macia.
Ando pelas ruas da cidade procurando o Banco Nacional, a Mesbla, a loja da Varig, a carrocinha de cachorro, alguém calçando tênis bamba ou um telefone publico que ainda funciona com ficha.
Nada disso.
O que mais vejo são os automóveis que sumiram das metrópoles. As ruas estão cheias de Polaras, Fuscas, Unos Mille, Kadetts, Belinas, Ipanemas, Opalas, Vemaguetes e Corcéis 73.
No último dia, já saindo da cidade, quando paramos numa esquina, vi estacionado na garagem um carro que nem me lembrava mais, apesar de nem tão antigo assim. Vi um Twingo azul calcinha tinindo, conservadíssimo, um brinco.
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