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Avenida mundo

O diretor Felipe Hirsh retorna ao Sesi–SP e leva ao palco a paisagem e as vidas que transitam do lado de fora do edifício

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Caos. Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso, que reproduz um prédio de três andares e é alinhavado por canções, fica em cartaz até junho – Imagem: Helena Wolfenson
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Quando, dentro do teatro, a peça começa, parece que somos levados, num átimo, para o lado de fora do prédio da Fiesp – o famoso edifício do pato amarelo inflável, localizado na Avenida Paulista, vizinho ao Parque Trianon.

No palco, os atores alinham-se na calçada à espera de um ônibus que nunca chega, representando tipos que são, ao mesmo tempo, genéricos e muito específicos, como o vendedor ambulante e a jovem que tenta compartilhar sua poesia.

O ambiente sonoro, composto de diversos ruídos – dentre os quais ressoam fortes os de motos e sirenes – é idêntico àquele que os espectadores ouviam antes de entrar no edifício onde fica o ­Teatro Popular do Sesi.

Depois de algum tempo, restarão apenas dois personagens no palco. Surge então o cenário de Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso: um edifício de três andares, com duas escadas, que reproduz a fachada do Conjunto Nacional, prédio-símbolo desse pedaço de São Paulo.

Pelas janelas vê-se a vida que pulsa, barulhenta: uma pessoa com um as­pi­rador; outra com um secador; outra ainda com uma furadeira; e o músico com seu saxofone. Na sequência, aparece um cantor no palco. Está dado o tom do que se seguirá.

Felipe Hirsh, o diretor de Avenida Paulista, admite que fez algo grande – e talvez um pouco absurdo, até para seus próprios padrões. “Quando me chamam, já sabem: o negócio vai ser à beira do abismo”, diz, rindo, em entrevista a ­CartaCapital, um dia antes da estreia. Na antevéspera, a reportagem tinha visto a peça em uma sessão para funcionários do Sesi. E ele avisa: “Já mudei bastante coisa”.

Faz 20 anos que, nesse mesmo teatro, Hirsh estreou Avenida Dropsie, feita a partir do universo de Will Eisner. A peça formou filas que se estendiam por mais de um quarteirão e levou seu grupo, a Sutil Companhia de Teatro, fundada em 1993, em Curitiba, para o exterior. Não é exagero dizer que marcou época.

Avenida Paulista não deixa de ser uma revisita àquele espetáculo. A peça é também parte das celebrações em torno dos 60 anos do Teatro do Sesi–SP, que se completaram em 2024, mas seguem a nortear a programação.

Esse espaço, que recebeu ao longo da história grandes nomes do teatro brasileiro, foi, e segue a ser, a primeira experiência teatral de muita gente que vive em São Paulo. Gratuito, é conhecido pela qualidade e pelas filas. Hirsh conta, inclusive, que a ideia para Avenida Paulista nasceu de um relato feito por Emicida sobre sua experiência ali.

O rapper contou, em um podcast, que tinha 19 anos quando, por trabalhar na Paulista, começou a frequentar a gibiteca do Sesi. Foi assim que ficou sabendo da estreia de Avenida Dropsie, um espetáculo que o impactou de maneira profunda. “Agora viemos para uma avenida bem mais próxima”, diz o diretor, que vive há mais de 20 anos ao lado da Paulista.

“Quando me chamam, já sabem: o negócio vai ser à beira do abismo”, provoca o encenador

Pai de um menino de 5 anos, com quem cruza a avenida na volta da escola, ele chegou a pensar em mudar de casa, mas, como descreve no programa da peça, ali permaneceu: “Então sigo aqui, ouvindo sirenes de ataque aéreo ao meio-dia, britadeira às 3 da manhã, o vidro da janela tremendo com protestos, com paradas, com a história”.

A construção do espetáculo teve como ponto de partida tudo isso que a Paulista, frenética e diversa, oferece. Atores e dramaturgos andaram muito por ali para colher inspiração e dar forma aos tipos e à paisagem social agora postas em cena, em uma série de sequências.

“No fundo, no fundo, isso tudo virou uma tentativa de fazer com que aquelas vidas, aquelas pessoas, aquelas histórias todas desfilem na frente da plateia”, escreve um dos autores, Caetano W. Galindo, no programa, tentando explicar a empreitada de “concentrar”, à frente de cada espectador, os tantos mundos que a avenida abriga em seus 3 quilômetros.

Centrais para a composição desse universo foram também a cenografia de Daniela Thomas, a luz de Beto Bruel e as 26 canções de 15 músicos para o espetáculo. Dentre eles estão, sobretudo, artistas da nova geração, como Tulipa Ruiz, DJ K, Negro Leo e Kiko ­Dinucci. Mas há também nomes das gerações que os antecederam, como Mauricio Pereira e Arnaldo Antunes.

“Essa geração está criando um cenário muito rico, e transcendendo o que foi feito antes”, diz Hirsch. “O Mauricio Pereira teve grande influência sobre esse grupo. E o Arnaldo, bom, é impossível falar na Avenida Paulista e não pensar nele.” As músicas foram sendo “encomendadas” via grupos de WhatsApp. No fim, nem todas couberam.

A peça, ainda assim, tem 180 minutos de duração – mas, como se sabe, um certo excesso e um quê de caos estão longe de ser entendidos por Hirsch como características negativas. “O tempo, no teatro, é muito relativo. Uma peça de uma hora pode demorar mais a passar do que outra mais longa”, diz. “Depende da partitura… E eu gosto das partituras que se esgotam.” •

Publicado na edição n° 1350 de CartaCapital, em 26 de fevereiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Avenida mundo’

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