Cultura

Aumenta o cerco à liberdade de expressão em shows pelo Brasil

Músicos que ousaram criticar Bolsonaro e Moro foram alvos de retaliações. Para BNegão, passou da hora de reagir da polícia

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O tempo urge. “Agora é um dos últimos momentos possíveis antes de virar barbárie total”, alerta o rapper carioca BNegão, que teve um show interrompido pela Polícia Militar de Bonito, em Mato Grosso do Sul, na madrugada do domingo 28 de julho. O conflito pairava no ar durante todo o Festival de Inverno da cidade, com coros populares de reprovação ao presidente Jair Bolsonaro em meio aos shows de Gal Costa, Lenine e BaianaSystem. A beligerância explodiu durante a apresentação de BNegão, um artista que jamais deixou de se posicionar politicamente no palco, desde o início do sucesso turbulento com o grupo de rap Planet Hemp. O caso poderia ter morrido em Bonito, mas ganhou repercussão nacional devido à atitude de BNegão, que confrontou a violência policial no alto do palco e fora dele.

Durante o show, além de criticar abertamente Bolsonaro e Sérgio Moro, o artista relatou episódio ocorrido dois dias antes, quando dois integrantes da produção do festival, um rapaz e uma moça, teriam sido agredidos fisicamente pela Polícia Militar de Bonito. “O cara estava todo inchado. Foi basicamente torturado a noite toda”, relata BNegão. “O mesmo cara que comandou a ação policial na quinta-feira sem estar identificado foi o cara que chegou junto com o representante da Secretaria de Cultura do Estado, falando que tinha de acabar o show e se não acabasse em 12 minutos, às 3 horas da manhã, eles iam ter de fazer uso da força”, denuncia. O artista decidiu encerrar o show, e afirma que mesmo assim houve uso de intimidação, armas e gás de pimenta para dispersar a multidão que havia assistido aos shows ao ar livre.

Em nota oficial, a Primeira Companhia Independente de Polícia Militar de Bonito refutou as denúncias: “Comunicamos que o fato em tela não passa de informação inverídica e reprovável”. A CartaCapital o comandante da PM, Ademir Oliveira, atribuiu o conflito ao horário e negou as denúncias de BNegão: “É obrigação minha abrir um inquérito para apurar, mas não existe nenhum registro de agressão, não existe nem denúncia”. 

Após o episódio, a prefeitura de Bonito, comandada pelo tucano Odilson Arruda Soares, emitiu nota oficial que revela incômodo com os protestos durante o festival: “A Prefeitura de Bonito entende que todos têm direito a expressão, mas não concorda com manifestações explícitas de lados políticos ou mesmo desrespeito aos atuais governantes durante o evento, seja por artistas contratados e pagos com recursos públicos federais, estaduais e municipais, ou por parte do público presente”. Noutras palavras, artistas e plateia devem se autocensurar, andar na linha e manter o bico calado. Em tempos democráticos não costuma ser assim. Na interpretação de BNegão, “o negócio é o clássico da época da ditadura: quando se dá poder para essa galera bizarra, o pior de tudo é o guardinha da esquina”. E ele conclui: “Foi sim um ato de censura brutal, porque a gente estava falando mal dos dois heróis principais dos caras”. 

O caso BNegão traz à tona a ponta de um iceberg. Casos semelhantes têm ocorrido Brasil afora, nas mais variadas áreas, e especificamente no setor musical. Na segunda semana de agosto, a artista Laura Diaz, da banda eletrônica paulistana Teto Preto, denunciou outro episódio de censura. O grupo é um projeto feminista que tem na nudez um elemento crucial, e se apresentaria no festival Picnik, em Brasília, ao lado de artistas como Hermeto Pascoal e Otto, ao ar livre, em frente ao Memorial dos Povos Indígenas, instituição ligada ao governo do Distrito Federal, comandado pelo emedebista Ibaneis Rocha . 

Para BNegão, que enfrentou a violência policial, passou da hora de reagir

A Secretaria de Comunicação do governo nega qualquer ingerência no festival privado, mas Laura rebate e revalida a denúncia: “Sempre que acontece censura, censuram e depois tentam falar que não era bem assim, que era mais suave. Mas também não retiram as restrições. A organização do festival falou que alguém da diretoria do Memorial entrou em contato com eles, porque tomaram conhecimento do conteúdo do show do Teto Preto e deixaram claro que não poderia acontecer de maneira alguma nenhum tipo de discurso ou menção política. E, além disso, tinha a questão da nudez, que não poderia haver de jeito nenhum”. 

Diante da pressão, Laura diz ter decidido cobrir os seios e a genitália, mas em suas redes sociais o grupo convocou “todas as minas, monas e travestis pra ficar nuas e invadir esse palco”. E conta o resultado: “Na última música, Bate Mais, dedicada às mulheres, quando as mulheres subiram no palco peladinhas eu também arranquei a censura, e foi demais”. Tal como ocorreu com BNegão, Laura afirma não ter sofrido repressão posterior ao show. O momento parece ser de guerra de nervos entre os artistas que tentam continuar se expressando e os pequenos poderes que se movem cada dia mais à vontade com a conquista de terreno pelo bolsonarismo.

Nas redes sociais, a banda de música eletrônica Teto Preto, feminista, denunciou um episódio de censura

Os focos de conflito eclodem entre os alvos habituais – negros, mulheres, gays, travestis. Uma vítima preferencial tem sido a artista transexual paulista Linn da Quebrada. Com performance provocadora no palco, ela teve a gravação de um videoclipe interrompida pela polícia no sábado 10 numa igreja abandonada na Brasilândia. Mesmo com autorização prévia, o trabalho ficou paralisado por quatro horas, até poder ser retomado. Antes, havia sido cancelado um show que Linn faria no dia 3 de agosto, na Parada LGBTQ de João Pessoa , porque a Fundação Cultural da capital paraibana, ligada à prefeitura sob comando de Luciano Cartaxo, do PV, teria supostamente considerado o discurso da artista “muito pejorativo”. A instituição atribuiu o caso a um “mal-entendido” por parte de Linn da Quebrada, num flagrante de como as relações se deterioram diante do avanço da censura e/ou da autocensura. O diretor-executivo da fundação, Maurício Burity, afirma que nenhum contrato chegou a ser firmado e nega referência da instituição ao discurso da artista. “A gente não entra em celeuma de subjetividade, de quem pode ou não. Não sou do Exército nem da Aeronáutica. Nossa relação com a comunidade é excelente. Foi coisa de fofoca”, diz.

Casos interligados, como os de BNegão, Teto Preto e Linn da Quebrada, expõem muito pelo que dizem e deixam de dizer. Trata-se de artistas de confronto, que sabem que estão na linha de frente da trincheira. “Cada vez mais a gente está chegando num tensionamento que para mim é claro, desde o princípio do Teto Preto”, diz Laura. “Não estou fazendo o Teto à toa, milito há muito tempo. É um tensionamento imprescindível, seja eu ou uma artista mais delicada ou lúdica. Ela também vai ser reprimida.”

Linn da Quebrada sofre perseguição por não amainar seu discurso crítico

BNegão vai na mesma direção: “Sempre amei música, mas o que me fez entrar na música foram o punk rock nacional e o rap nacional. Eu venho da escola do embate, não tem como não me manifestar. Estou preparado para as missões”. Ele reitera a importância de não se calar diante do cerco que se fecha: “Quanto mais gente não afinar nem pipocar, melhor. A grande imprensa está dando todas as permissões para esse grande crápula, está normalizando os absurdos. Vejo claramente que é um dos últimos momentos possíveis de frear essa parada”.

O medo é geral e os artistas citados são exceções ao botar a boca no trombone, mas, como diz Laura Diaz, as consequências de ceder espaço ao cerceamento serão sofridas por todos. “A galera não quer assumir, ninguém quer sujar a mão. A louca é a menina que fica pelada, sempre. Cara, que tipo de prazer eu tenho de gastar seis horas antes do show falando com gente e arranjando esparadrapo pra pôr na teta?”, pergunta.

“Quanto mais gente não afinar nem pipocar, melhor”, defende o rapper BNegão

BNegão sentencia: “É preciso coragem, mas, mais do que isso, um senso mínimo de humanidade e entendimento do quão grave é essa situação, esse limite do absurdo, entre os mínimos marcos civilizatórios e a barbárie completa e absoluta”. Uma receita de combate ele diz ter encontrado no movimento dos Policiais Antifascismo, do delegado Orlando Zaccone, adepto do hare krishna e defensor da legalização da maconha. “Nunca na vida imaginei que pudesse um dia dizer que tenho um policial amigo meu, mas esse cara é um policial e considero um grande amigo. É um movimento que está crescendo, tem no Brasil todo”, diz. O tempo urge.

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