Cultura

Assombrações contemporâneas

O modo de produção capitalista, na visão de Mark Fisher, suga a energia vital

Gentrificação. O autor olhava para a Londres de 2021, transformada pelos Jogos Olímpicos, e lamentava o fim dos “vazios e cavernas” da época do punk - Imagem: Lindsay Uelling
Apoie Siga-nos no

Mark Fisher tornou-se conhecido na internet no início dos anos 2000, por meio do blog ­“k-punk”. Chamava atenção a variedade de temas e artefatos culturais comentados: música, cinema e literatura, filosofia e programas de tevê, inovações tecnológicas e tendências mercadológicas.

Aos poucos Fisher estabeleceu-se como figura proeminente no debate das ciências humanas, atuando dentro e fora da academia, publicando seus livros e editando coletâneas e periódicos. Seu suicídio, em janeiro de 2017, reforçou de modo amargo aquela que foi sua principal hipótese: o modo de produção capitalista, fundado na velocidade, na superficialidade e na obsolescência, suga a energia vital dos indivíduos, mascarando o processo como “livre iniciativa”. A angústia e a depressão seriam, nesse sentido, problemas sistêmicos.

FANTASMAS DA MINHA VIDA. Mark Fisher. Autonomia Literária (288 págs., 64 reais)

Dois de seus livros chegaram recentemente ao Brasil: Realismo Capitalista e Fantasmas da Minha Vida: Escritos Sobre Depressão, Assombrologia e Futuros Perdidos. As edições são caprichadas, e trazem aparatos que auxiliam o leitor na contextualização do pensamento de Fisher.

Realismo Capitalista diagnostica a falta de imaginação de uma sociedade globalizada que se crê sem alternativas. Partindo da ideia – amplamente difundida nos anos seguintes – de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, Fisher argumenta que o “realismo capitalista” impôs uma mentalidade empresarial que contaminou todas as camadas da sociedade – da cultura à educação, passando pela saúde, pela vida familiar e pela criação dos filhos, tudo deve ser gerido e otimizado.

A disseminação dessa lógica levou ao desmoronamento da capacidade de “elaboração simbólica”. Em vez de processar a própria vida seguindo valores conscientemente adquiridos, o indivíduo transforma-se em um “consumidor-espectador”, que segue “tendências” e aplica à própria vida, sem modulação, o que é ditado pela moda.

REALISMO CAPITALISTA. Mark Fisher. Autonomia Literária (218 págs., 50 reais)

O que torna o pensamento de Fisher particularmente instigante é o modo como ele relaciona elementos abstratos – as teorias de Jameson ou Lacan, por exemplo – com trajetórias concretas do universo pop, passando por Michael Jackson, Kurt Cobain, Frank Miller, Quentin Tarantino e Pixar.

Em Fantasmas da Minha Vida, o panorama se transforma: no conjunto de ensaios, Fisher mescla suas vivências à análise crítica de filmes, livros e a conceitos teó­ricos. A partir da ideia de “assombrologia”, tirada de Jacques Derrida, ele singra por temas como a relação entre memória e nostalgia, o fim das perspectivas de futuro e a latência dos desejos inconscientes.

Esse conceito busca descrever o modo como a cultura contemporânea é perseguida por “futuros perdidos”, muitos deles inviabilizados por regimes de prevalência neoliberal. Seu objetivo é construir uma voz crítica que leve em conta não apenas a dimensão abstrata dos conceitos, mas o modo como a subjetividade é afetada pelos discursos e objetos.

Como fez Freud em A Interpretação dos Sonhos, Fisher toma as próprias obsessões como pontos de partida para as reflexões sobre o mundo. Um exemplo do registro autobiográfico está em sua relação com Londres. Ao caminhar pela cidade transformada pelos projetos para os Jogos Olímpicos de 2012, Fisher reflete que, na época do punk, ainda havia “vazios e cavernas”, espaços que poderiam ser temporariamente ocupados e habitados. Com os espaços privatizados, a energia da cidade é usada para pagar hipotecas e aluguéis – uma observação que liga o pessoal ao coletivo e toca em uma realidade que muitos reconhecemos e lamentamos. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

No processo de resgate das vozes femininas, ganha nova existência a baiana Amélia Rodrigues (1861-1926), autora do romance O Mameluco (paraLeLo13S, 220 págs., 82,90 reais), publicado em forma de folhetim, em 1882, e só agora lançado em livro, a partir do prêmio Rumos, do Itaú Cultural.

Bíblia – As Histórias Fundadoras, do Gênesis ao Livro de Daniel (Editora 34, 504 págs., 198 reais), sucesso francês, chega ao Brasil em uma linda versão. O livro traz 35 histórias do Antigo Testamento recontadas por Frédéric Boyer e ilustradas, de forma expressiva, por Serge Bloch.

A escritora norte-americana Jennifer Ackerman insere-se na linhagem de autores que exploram a riqueza da vida de seres cuja complexidade nos escapa. Em ­A Inteligência das Aves (Fósforo, 368 págs., 89,90 reais), ela destrincha o pequeno cérebro dos seres que têm asas para voar.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Assombrações contemporâneas “

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo