Cultura

Assassinatos em episódios

ADICIONAR AUTOR: Danny Leigh   Por que demorou tanto, Casa Gucci? Essa história estava destinada a se tornar um filme desde o momento em que uma bala matou o herdeiro da moda Maurizio Gucci na frente de seu escritório, em Milão, em 1995. O filme de Ridley […]

Clima. Casa Gucci, dirigido por Ridley Scott e protagonizado por Lady Gaga, parece deslocado no tempo quando comparado à serie sobre OJ Simpson
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ADICIONAR AUTOR: Danny Leigh

Por que demorou tanto, Casa Gucci? Essa história estava destinada a se tornar um filme desde o momento em que uma bala matou o herdeiro da moda Maurizio Gucci na frente de seu escritório, em Milão, em 1995. O filme de Ridley Scott chega finalmente às telas, com o poder estelar de Lady Gag­a como a ex-mulher de Gucci, Patrizia Reggiani, mas a história bastava por si. Trata-se de uma combinação brilhante de dinheiro, vingança e uma vilã que tinha como companhia ilícita na prisão um furão chamado Bambi.

Apesar de tudo isso, por que o caso ­Gucci parece, agora, não caber direito num filme? A culpa é do momento. O filme começou a ser desenvolvido na pré-história do entretenimento: 2006. À época, um filme de alto orçamento ainda era o grande prêmio para qualquer história de crime real – o famoso gênero true crime. ­Hoje, no entanto, filme e crime ­real parecem um casal brigado. Se ­Maurizio ­Gucci tivesse sido baleado em Via ­Palestro na semana passada, a Netflix teria os direitos e o ­podcast estaria no Spotify. O marco da conquista do crime real sobre as novas mídias é o sucesso do podcast Serial (2014), e o pico nunca parece chegar. Ao entrelaçar ­pods e streaming, o gênero tornou-se maior que os filmes.

“Quando comecei a estudar o true ­crime, ninguém o levava a sério”, diz a escritora Jean Murley, que, em 2008, publicou The Rise of True Crime: 20th ­Century Murder and American Popular Culture ­

(A Ascensão do Crime Real: Assassinato no Século XX e Cultura Popular Americana). “Agora parece que é a forma predominante de narrar histórias na cultura pop. Acho que isso tem muito a dizer sobre nós mesmos.” Na cultura pop, mas não necessariamente nos filmes. “Os filmes do gênero eram definitivamente maiores antigamente”, diz ­Murley. “A mídia muda. Nós mudamos.”

Se Gucci tivesse sido baleado na semana passada, a Netflix já teria os direitos sobre a tragédia

O pioneiro M, o Vampiro de ­Dusseldorf (1931), de Fritz Lang, foi extraído de assassinatos reais de crianças. Psicose (1960), de Hitchcock, reformulou o feio caso de Ed Gein. Mas, para além dos marcos individuais, o próprio material da narrativa cinematográfica – filmes de gângsteres, de terror, de suspense e de caubói – brotou do crime real. O gênero comportou desde documentários sóbrios até superproduções estreladas. O sangrento Casa Gucci pertence, é claro, ao segundo grupo.

O deslocamento temporal do filme deixou-se ver até na estreia, em Londres. As brincadeiras no tapete vermelho pareciam antiquadas e Jared Leto virou meme com o terno de veludo que usou. Hoje, o crime real comporta-se de forma diferente. As histórias ainda podem enfocar os ricos e famosos, mas desde que sem deslumbre.

Pensemos na aclamada série O Povo Versus OJ Simpson (2016). Do ponto de vista de estilo, ela tinha tudo o que uma série no streaming oferece e um filme não pode oferecer: espaço para respirar no tempo de duração, estrutura episódica, lugar para detalhes de alcova. E havia ainda o tom. Serial definiu um novo tom. Se um projeto fosse reabrir uma famosa ferida como, digamos, o assassinato de Nicole Brown Simpson, teria de ampliar as lentes, humanizar a vítima, contextualizar tudo. O crime em si não podia mais ser a única história.

No caso dos podcasts, assassinatos terríveis e vítimas do dia a dia têm sido o cotidiano da produção. A lição de filmes como M ou Psicose, de que os monstros estão entre nós, agora vem dos ­podcasts ­Park Predators e Wine & Crime. Muitos ­podcasts de crime real adotam, porém, um clima cinematográfico. Os produtores de This American Life – do qual saiu Serial – dizem fazer “filmes para o rádio”. Mas os toques fílmicos parecem menos uma homenagem do que uma canibalização. Outro marco foi The Jinx (2015), retrato de Andrew Jarecki do herdeiro imobiliário americano e hoje assassino condenado Robert Durst. E quem se lembra de All Good Things (2016), filme inspirado em Durst estrelado por Ryan Gosling?

Agora, até mesmo uma história de crime real de Hollywood torna-se um ­podcast. A cineasta Vanessa Hope é neta do produtor de cinema Walter Wanger e da atriz Joan Bennett, uma femme ­fatale importante. Em 1951, suspeitando de um caso, Wanger matou a tiros o agente de sua mulher, Jennings Lang, em um estacionamento em Beverly Hills. Este ano, Hope contou a história em um ­podcast em dez capítulos, ­Love Is a ­Crime (O Amor É Um Crime). Para Hope, não fazia sentido que o projeto fosse um filme. “Hollywood sempre ganhou dinheiro com uma arma e uma garota. A arma é glorificada e a garota – a mulher – fica calada.” A própria natureza do filme, diz ela, é errada para a função. “Um filme de duas horas sempre reduzirá o arco da vida das pessoas. E a pessoa mais reduzida é a vítima.”

Outra característica dos podcasts de crime real é que eles abrem casos no ar e, muitas vezes, as pontas soltas são apanhadas online. Já para um filme de Hollywood, a incerteza é a morte. Mas o crime verídico como investigação ao vivo não é a única novidade. Os fãs do gênero sempre visaram as mulheres. Os ­podcasts só intensificaram isso e o resultado é uma paisagem onde há muitas mulheres trabalhando nos projetos e sendo retratadas como personagens.

Filmes no rádio. O podcast Serial (2014) definiu o novo tom adotado pelas narrativas

Casa Gucci também se concentra em uma mulher. A figura da viúva negra é tão antiga quanto estatisticamente improvável e comercialmente atraente. O filme de Ridley Scott recebeu críticas de membros da família por diversos motivos. Entre eles estão a violação de privacidade e a interpretação por Al Pacino do patriarca Aldo Gucci (“gordo, baixo, feio”). Prova de que o gênero ainda caminha sobre o gelo fino da ética.

Mas o sucesso do gênero tem outra face. Em setembro passado, um ruído atordoante seguiu-se ao desaparecimento da americana Gabby Petito, que morava numa van. Ele só aumentou quando se descobriu que ela foi assassinada. O Grande Crime Verídico já estava em ação. “Quando você liga o Hulu”, tuitou a mãe de ­Gabby, referindo-se à rede de ­streaming, “vê a história de sua filha como o programa recomendado.”

Até amantes do gênero estão perturbados pela fixação por um tipo de vítima. “O crime real nunca refletiu a realidade do assassinato”, diz Jean Murley. “É quase um gênero de fantasia. Quem é assassinado nos Estados Unidos? Majoritariamente, rapazes negros. Mas a vítima básica do gênero é uma mulher branca, jovem e bonita. É muito ritualizado.” Murley vai considerar esta e outras questões em uma próxima versão de seu livro. Há, afinal de contas, muito a dizer sobre o crime verídico no século XXI. •

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


CRIMES REAIS, VERSÃO LOCAL

Bons resultados levam Netflix e GloboPlay a investir em novas produções do gênero

Pontos de vista. A série da Netflix trouxe a versão de Elize Matsunaga

A onda das séries para ­streaming e podcasts de crimes reais tem, no Brasil, características próximas às das ­produções internacionais. Elize ­Matsunaga – Era uma Vez um Crime, da ­Netflix, por exemplo, foi dirigida por Elisa Capai, uma mulher, e procurou dar voz a outra, Elize. O Caso Evandro, dirigida por Aly Muritiba (ler texto à pág. 58), que reconstitui o sequestro e morte de um menino no Paraná, na década de 1990, foi originado em um podcast. O sucesso foi tal que a plataforma já encomendou outra série do gênero true crime para os mesmos criadores de O Caso Evandro. O GloboPlay produziu ainda Em Nome de Deus, sobre o médium João de Deus. A Netflix, por sua vez, prepara uma série sobre a tragédia na boate Kiss, baseada no livro de Daniela Arbex. – Por Ana Paula Sousa

CRÉDITOS DA PÁGINA: UNIVERSAL/MGM E FX – NETFLIX E HBO/SKY ATLANTIC

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1185 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE NOVEMBRO DE 2021.

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