Cultura
As violências de ontem e de hoje
Andréa Beltrão joga luzes sobre a intensa trajetória de Mércia Albuquerque, defensora de centenas de presos políticos


Andréa Beltrão tinha acabado de se despedir de Antígona, que encenara ao longo de sete anos, quando a diretora Yara de Novaes dividiu com ela o desejo de levar ao palco os diários da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003), cuja trajetória foi marcada pela busca dos desaparecidos da ditadura.
“Minha primeira reação foi falar para a Yara: ‘Mas será que eu quero, de novo, viver uma mulher lidando com corpos?’”, conta, na entrevista concedida a CartaCapital, por Zoom, às vésperas da virada do ano. “Mas, quando comecei a tomar contato com o material, vi que era impossível não me debruçar sobre ele.”
Em Antígona, de Sófocles, a protagonista enfrenta a ordem do rei Creonte para evitar que seu irmão fique insepulto. Lady Tempestade, em cartaz no Teatro Poeira, em Botafogo, Zona Sul do Rio, desde a quinta-feira 4, recupera a trajetória da mulher que defendeu mais de 500 presos políticos, sobretudo do Nordeste, e devolveu à família o corpo de um jovem assassinado pelos militares.
O ponto de partida da peça escrita por Silvia Gomez são os textos deixados por Mércia, em cadernos, com passagens riscadas, que registram suas atividades políticas e pessoais, sobretudo, nos anos de 1973 e 1974. “O material é confessional e íntimo, mas nos parecia que tinha a vocação de se tornar público”, diz a diretora.
Yara havia tomado contato com a história de Mércia ao participar, como atriz, do filme Zé, de Rafael Conde, sobre o militante mineiro José Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado no DOI-Codi do Recife em 1973. Foi Mércia quem conseguiu localizar o corpo de Zé, promover a exumação e a transferi-lo para Belo Horizonte, onde vivia sua família.
Impactada pela descoberta dessa figura tão significativa e tão pouco conhecida, Yara resolveu procurar o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte, que guarda os arquivos de Mércia desde que ela morreu, em 2003. Teve, assim, acesso aos diários antes mesmo da publicação de Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974, em 2023, pela Editora Potiguariana.
“A partir do momento em que decidimos contar essa história, o desafio era como colocar os diários em cena”, diz a diretora. A dramaturga Silvia Gomez criou então A., a personagem de Andréa, uma atriz a quem são entregues os diários e que se vê obrigada a lidar com o que as palavras revelam.
“O que acho bonito no meu ofício é poder contar as histórias dos outros”, afirma a atriz
“Na montagem, está tudo encerrado e inscrito no corpo de uma atriz que dá passagem para esse espectro”, descreve Yara. “No teatro, os fantasmas são a nossa força, os nossos aliados. Como diz a Silvia, o teatro é gentil com os fantasmas.” A. evoca outros personagens que, juntos, vão entrelaçando o passado, o presente e o futuro que o texto se propõe a colocar simultaneamente em cena.
O cenário está assentado em um carpete meio mofado e tem uma configuração que remete ao próprio espaço de ensaio do Teatro da Poeira, com mesa, sofá, microfone de pedestal, papéis. Embora dos diários emerja especialmente o passado, o texto relaciona-se de forma direta com o presente.
Por meio de um áudio, entra em cena, por exemplo, a mãe de um jovem assassinado na Bahia, em 2022. Os sons do Bope chegando, de cachorro latindo e criança chorando – na descrição de Yara – ajudam as diferentes temporalidades a deslizar pelo ambiente.
“Uma coisa muito importante que a Silvia criou, conforme ela foi tecendo todo esse material, foi a ideia de que tudo ‘aconteceu, acontece e acontecerá’. Essas histórias ainda estão aqui”, diz Andréa, referindo-se às tantas mães que seguem a clamar por justiça diante da morte de seus filhos.
“O que acho bonito no meu ofício é poder contar as histórias dos outros, é ser uma voz capaz de contar histórias. Hoje, depois de tantos anos de ofício, tenho um acúmulo de pessoas dentro de mim. Isso me dá certa propriedade, mas também implica vulnerabilidade, porque, quanto mais eu faço, mais sei que nada sei”, diz Andréa, que 40 anos atrás fez sua estreia em uma novela, Corpo a Corpo (1984).
Dona de uma longa e admirável carreira, na qual televisão, cinema e teatro sempre conviveram harmonicamente, Andréa tem a clara consciência de que quando sobe ao palco não é, nem pode ser, tão somente a personagem que interpreta.
Diz ter aprendido com os diretores Aderbal Freire Filho, morto em 2023, e Amir Haddad a estar sempre presente em cena. “Estou fazendo a Mércia, mas estou ali também”, diz. “O Aderbal falava: ‘Você não vai sair totalmente de cena, não. Uns 20% ali têm de ser você. Se cair uma cadeira em cena, é você que vai agir’. Em Antígona, tinha a tragédia, tinha a narradora e tinha eu, com a minha opinião. Esse eu era o mais difícil.”
Em Lady Tempestade, esse “eu” é não só uma atriz, mas uma mãe, com o filho ajudando-a a compreender quem foi, quem é, e o que foram as coisas do País. E o papel cabe a Chico Beltrão de Farias, um dos três filhos da atriz com o diretor Maurício Farias, e responsável também pela trilha sonora do espetáculo.
A montagem fica cinco semanas em cartaz e, então, as apresentações serão interrompidas para que Andréa grave a nova novela das 18 horas da Globo, No Rancho Fundo, adaptação de Mário Teixeira para a peça Capital Federal, de Artur Azevedo. Encerradas as gravações, Lady Tempestade será retomada, e deve viajar para outras cidades.
Dias antes da estreia, a atriz, cheia de vida e intensidade, resumia assim a nova pele que habita: “Mércia era uma mulher que não tinha medo de nada”. •
Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Dos fronts à recessão: como a Primeira Guerra Mundial redefiniu o capitalismo
Por César Locatelli
Mais dinheiro, novos desafios
Por Ana Paula Sousa
Melodista brilhante, Carlos Lyra levou a política à bossa nova
Por Augusto Diniz
O corpo visto como obsoleto
Por Paulo Cezar Soares
Uma vida forjada nos tatames
Por Ana Paula Sousa
Roberto da Silva: da Febem à USP, uma vida de inspiração termina aos 66 anos
Por CartaCapital