Cultura
As trilhas que levaram a Trump
Com Encruzilhada, Jonathan Franzen dá início à trilogia na qual se dispõe a atravessar a história dos EUA da década de 1960 até os dias atuais


O realismo, embora tenha tido seu auge, na literatura, no século XIX, nunca saiu ou sairá de moda. Mesmo na fragmentação da pós-modernidade, essa forma não apenas se mostra eficaz para dar conta do mundo como segue a capturar corações e mentes. E Jonathan Franzen, nascido nos Estados Unidos, com três décadas de carreira, é, sem dúvida, um dos mais bem-sucedidos autores do gênero em seu país.
Sua mais recente obra, Encruzilhadas, não foge à regra nem à máxima de Tolstoi sobre as famílias – “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A família sobre a qual ele se debruça no novo romance – o primeiro de uma prometida trilogia – são os Hildebrandt, moradores da fictícia New Prospect, no subúrbio de Chicago.
Como em seu livro mais famoso, As Correções (Companhia das Letras), publicado em 2001, cada capítulo traz a perspectiva de um membro da família. Desse conjunto de vozes, Franzen extrai um amplo painel íntimo, social, cultural e político de um hábitat. A história começa no início dos anos 1970, com a Guerra Fria respondendo pelo espírito do tempo a ressaca dos anos de 1960 ainda causando dores de cabeça.
Os Hildebrandt, por sua vez, são uma família com os dias contados. Aquela estrutura, logo percebemos, está a caminho de se desfazer. O patriarca é Russell, pastor assistente em uma igreja local, criado numa comunidade Menonita – ligada ao cristianismo evangélico –, que descobriu o mundo na Segunda Guerra Mundial. Sua mulher, Marion, três anos mais velha, é uma figura tomada pela nostalgia da intensa juventude vivida em Los Angeles marcada por barbitúricos, aborto e pela internação numa clínica psiquiátrica.
ENCRUZILHADAS. Jonathan Franzen. Tradução: Jorio Dauster. Companhia das Letras (600 págs., 159,90 reais)
A nostalgia da matriarca estende-se a outros personagens e ao próprio romance. Esse tom parece ser usado como demonstração de que a fraturada década de 1970 estava completamente fora dos trilhos, e que, se desejamos ambicionar um futuro melhor – ou, ao menos, diferente – temos de saber olhar para a história. O momento retratado por Franzen é aquele que culminaria, na década seguinte, na ascensão neoliberal e conservadora, simbolizada por Ronald Reagan.
Encruzilhadas funciona como uma arena na qual se desenrolada uma disputa entre gerações, materializada pelos confrontos entre Russell e Marion e seus três filhos. Clem, o mais velho, é um estudante universitário, apaixonado por Camus, e “incapaz de perdoar Sartre por seu comunismo”. Becky é garota certinha, cuja vida se transforma quando começa a namorar um músico. Perry, dono de um QI de 160, sente-se pressionado pela inteligência acima da média e acha que jamais poderá ser realmente bom em alguma coisa.
Este é o livro mais humano e menos cínico de Franzen. É também aquele no qual ele demonstra maior controle da narrativa. Se em As Correções o autor pisava em um terreno parecido, mas na virada do século XX para o XXI, agora ele olha para um passado um pouco mais longínquo, para se perguntar como chegamos aqui. O “aqui”, no caso, é o presente recente: aquele dos EUA sob Donald Trump.
Há uma moral clara no romance, pois o autor sabe muito bem onde quer chegar. A pergunta central a permear todos personagens é: como ser uma boa pessoa num mundo espiritual, política e culturalmente degradado? Cabe lembrar que Franzen, como autor, sempre se teve como bastião de uma cultura mais intelectualizada, e sua literatura, como prova este caudaloso romance social do século XXI, é reflexo disso.
Encruzilhadas, com sua tentativa de historicizar o passado pelos olhos do presente, é, sem dúvida, um início promissor para a ambiciosa trilogia de Franzen. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Edgar Telles Ribeiro sempre foi um hábil narrador de histórias de amor – histórias que, por vezes, não passam de um olhar de esguelha – além de um autor fascinado pela própria ideia da escrita. Jogo de Armar (Todavia, 128 págs., 64,90 reais) se faz do encontro desses dois temas.
Lições Sobre Dom Quixote (Fósforo, 304 págs., 104,90 reais) reúne as aulas sobre Miguel de Cervantes dadas por Vladimir Nabokov, na década de 1950, como professor visitante de Harvard. Além de rever Cervantes, o livro, em suas
frestas, também descortina Nabokov.
É uma Virginia Woolf em busca da forma breve – seja um conto, seja um esquete – que Contos Completos (Editora 34, 376 págs., 86 reais) traz. O volume, organizado por Susan Dick, com tradução de
Leonardo Fróes, reúne 64 histórias escritas entre 1906 e 1941.
Publicado na edição n° 1261 de CartaCapital, em 31 de maio de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ”
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