Cultura

As três principais companhias de dança do País voltam aos palcos com novos espetáculos

Na dança da solição, o Grupo Corpo, a SP Cia. de Dança e a coreógrafa Deborah Colker recorrem a ensaios, aulas e apresentações virtuais

Tempo de solos. Em Primavera, Pederneiras, coreógrafo do Corpo, adere à “estética do isolamento” e cria duos para os bailarinos que vivem na mesma casa. (FOTO: José Luiz Pederneiras)
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Quando a decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) fechou teatros mundo afora, em março de 2020, a mais tátil das artes ficou suspensa no ar. Bailarinos não podiam mais se envolver com seus gestos lânguidos, lançar-se uns aos outros ou erguer-se sobre ombros, troncos e joelhos de colegas de cena. O interdito inviabilizava ensaios e apresentações.

Em resposta à proibição dos encontros de corpos, o Grupo Corpo ramificou-se. Sediada em Belo Horizonte, a principal companhia de dança do País tinha acabado de voltar de uma turnê por Estados Unidos e Canadá no dia em que a quarentena começou em Minas Gerais. Passado o estupor inicial, surgiu a solução: os 21 bailarinos do grupo receberiam em casa uma barra de alongamento de pouco mais de 1 metro, feita de PVC, e uma tira de linóleo de algo como 2 metros quadrados para forrar o piso da sala de ensaio improvisada. Não era o suficiente para fazer grandes saltos por cima do ladrilho ou do taco, mas era melhor que nada.

Esse foi um passo importante para o conjunto não perder o condicionamento, manter as aulas de técnica – ainda que em versão enxuta – e não quebrar a tradição de estrear coreografias a cada dois anos. A gambiarra das primeiras semanas de confinamento total e os ensaios em petit comité, com distanciamento, que passaram a ser organizados nos meses menos agudos da pandemia, são a fundação da Primavera, que estreia no dia 27 no Teatro Alfa em São Paulo e segue para BH e Rio de Janeiro.

O espetáculo usa 14 composições do Palavra Cantada, duo formado por Sandra Peres e Paulo Tatit, que é sucesso há anos entre o público infantil e igualmente xodó dos pais pelo refinamento musical. Em cena, faixas como Bruxa Feia e Canção dos Alienígenas surgirão despidas das letras e, quase sempre, com melodias e arranjos inéditos. O coreógrafo Rodrigo Pederneiras descreve a peça como “um balé de uma energia impressionante, o início de um novo ciclo, de uma retomada, sem ficar de cabeça baixa, com olhar altivo”.

A sinopse metafórica vem a calhar para a companhia, que perdeu um velho patrocínio fixo da Petrobras em 2019. Em maio passado, o Corpo foi contemplado em um edital da Vale que cobre a produção de Primavera e a manutenção do grupo por tempo determinado. Mas a saúde financeira inspira preocupação no clã que o comanda desde a fundação, em 1975. Ainda que tenham sido poupadas as demissões, houve, em determinados momentos, redução de jornada e salário. Privada das lucrativas turnês internacionais há quase 20 meses, a formação recorreu à venda de aulas online para engordar o caixa. Outras, gratuitas, foram oferecidas a profissionais da linha de frente do combate à Covid-19 e ao público em geral.

Além de ter perdido o apoio da Petrobras, o grupo mineiro foi privado das turnês

A própria decisão de não encomendar uma trilha 100% original tem a ver com os desafios logístico-financeiros da temporada pandêmica. Em outros tempos, o grupo mineiro alistou Caetano Veloso, Gilberto Gil, Lenine, Arnaldo Antunes, Uakti e José Miguel Wisnik, entre outros, para compor suas trilhas.

No palco, a “estética do isolamento” que veio à luz nos meses iniciais de aulas e alongamentos remotos cristaliza-se em uma profusão de solos e apenas três ­duos – e todos de bailarinos que são casais e moram juntos. As cenas coletivas, talvez o principal cartão de visita do Corpo, foram praticamente suprimidas. No único quadro de grupo de Primavera, oito bailarinos aparecem juntos, mas distanciados, por, no máximo, 30 segundos. Piscou, perdeu.

Criação hipnotizante de 2017 que exalta as rodas de culto da umbanda e completa o programa do Alfa, Gira teve seu intrincado desenho de entradas e saí­das de cena refeito, para que cada intérprete se sentasse sempre à mesma cadeira e vestisse só uma túnica. “Foi um trabalho do cão”, descreve Pederneiras, que diz não ter se adaptado aos ensaios online.

“Você tem que mostrar. No presencial, eu pego, faço o papel do homem, da mulher, corrijo. Sem isso, fica tudo na teoria”, diz o coreógrafo. Em Primavera, por causa da quantidade de solos, os bailarinos acabam por ter grande destaque individual. “Eles estão adorando”, diverte-se.

Se, no Corpo, foram incontáveis as adaptações, a carioca Deborah Colker, que apresenta Cura na Cidade das Artes, no Rio, ao longo deste mês e, em novembro, chega ao Alfa, garante ter feito exatamente o espetáculo que tinha em mente antes da pandemia. Iniciado em 2017, o projeto teve a estreia adiada sete vezes. No meio-tempo, a companhia que leva o nome da coreógrafa também perdeu o patrocínio da Petrobras e só conseguiu fechar um apoio da Vale no segundo semestre de 2020. Em agosto deste ano, dias antes da pré-estreia do espetáculo no Globoplay, o Bradesco juntou-se ao rol de financiadores do grupo.

Por causa das trepidações do caixa, algumas demissões foram realizadas. A peça nova começou, inclusive, a ser ensaiada de forma desfalcada, com apenas 13 bailarinos. Os outros quatro integrantes foram recontratados na reta final dos ensaios.

Saltos no escuro. Deborah Colker (à dir.) teve de demitir alguns bailarinos e deu início aos ensaios de Cura (acima) com a companhia ainda desfalcada.(FOTO: Ambev Brasil e Leo Aversa)

“É muito difícil trabalhar a sincronicidade, a memória do corpo, do gesto, quando está cada um em um lugar. No segundo mês de ensaios virtuais, de um total de três, comecei a perceber o quão improdutivo aquilo estava sendo. Sabia que era necessário o distanciamento, então lidei com disciplina, mas, para mim, não foi um período de criatividade, de invenção e inspiração”, afirma Deborah.

Assim que houve um afrouxamento das diretrizes de isolamento, o grupo começou a se encontrar presencialmente. Primeiro, ficavam todos de máscaras. Depois, com base em um protocolo aprovado pela OMS, que considerou bailarinos atletas, foi possível tirá-las. A força-tarefa fez também com que, buscando reduzir a exposição ao Coronavírus no transporte público, os artistas se mudassem para perto da sede da companhia, na Glória, região central do Rio. “Quando fomos pela primeira vez ensaiar em um teatro, em março deste ano, fiquei que nem uma formiga: cirúrgica, precisa. Sabia que isso era importante para salvar a companhia”, diz a coreógrafa.

Nos espetáculos virtuais, o delay e a busca pela sincronicidade são o grande desafio

Com trilha de Carlinhos Brown, Cura não tem DNA pandêmico, apesar do nome. O gatilho foi a busca de Colker por um tratamento para a doença genética de seu neto, Teo: a epidermólise bolhosa. A partir disso, a dramaturgia costura referências na busca por conforto, elevação e resposta na ciência, nas religiões e na arte – a cura que couber a cada um.

Convicta na eficácia da arte na cura, essa com letra minúscula, Inês Bogéa, diretora artística da SP Cia. de Dança, ligada ao governo do estado, manteve o grupo em plena atividade durante o último ano e meio. Se o home office dos primeiros quatro meses de pandemia exigiu “maturidade e adaptabilidade”, o balé chegou ao segundo semestre de 2020 com uma videoteca online sortida de produções domésticas ou rodadas em espaços alternativos de aparelhos culturais da capital, seguindo sempre uma rotina de testes de Covid-19.

A coreógrafa conta que, para uma das gravações, a da Gala Clássica na Sala São Paulo – exibida na TV Cultura –, os bailarinos só começaram a ensaiar no mesmo cenário dez dias antes. “A forma física não era a mesma, mas eu estava dirigindo a captação também, então os tranquilizei dizendo: ‘Vai dar certo, gente! Confia! Vou colocar vocês no melhor ângulo aqui!’”, brinca.

Entre as estreias da companhia nesse período estiveram Rococo Variations, coreografada a distância por Stephen Shropshire, norte-americano radicado na Holanda; Só Tinha de Ser com Você, editada para suprimir duetos, aumentar distâncias entre bailarinos e trocar interações táteis por olhares; e Respiro, de Cassi Abranches, que, como boa discípula de Pederneiras, tem uma queda por ­duos e formações numerosas, mas precisou se haver com solos. Em junho, a companhia chegou a se ver obrigada a interromper uma temporada por causa da contaminação de cinco bailarinos.

Outros ângulos. A SP Cia. de Dança mergulhou no online. Para a diretora Inês Bogéa, a dança filmada veio para ficar. (FOTO: Silvia Machado)

Bogéa celebra a produtividade, mas reconhece que o caminho foi pedregoso. “É difícil, exige muita disponibilidade. Nas chamadas em vídeo, tem d­elay, um fala por cima do outro, e tem a própria questão do desenho da cena, que pressupõe tridimensionalidade. Na dança, a descoberta do gesto, da coreografia, se dá na proximidade.”

Para ela, as transmissões online, com ângulos inacessíveis a quem assiste in loco,­ vieram para ficar. “Isso democratiza o acesso e permite que a gente se conecte a pessoas do mundo todo. Uma das nossas gravações foi assistida por uma crítica estrangeira que não nos conhecia e escreveu uma resenha linda”, diz.

Já Pederneiras, do Grupo Corpo, afirma que a engenharia cênica de distanciamentos e solos exige dele o treinamento de “músculos” coreográficos pouco convocados em criações anteriores. “Tem que preencher o palco com quase ninguém, usar o espaço de outro jeito. E sem deixar a coisa esmorecer.”

Publicado na edição nº 1180 de CartaCapital, em 21 de outubro de 2021.

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