Cultura
As tramas da pauta feminista
As 11 estreias da semana incluem cinco títulos dirigidos ou codirigidos por mulheres, que vão do entretenimento engajado à narrativa experimental


E tamanho o volume de filmes lançados nos cinemas todas as semanas que o público mal consegue saber quais são as estreias. Embora a atenção acabe por se voltar ao título que faz mais barulho, a maioria silenciosa revela um fenômeno que merece ser ressaltado.
A lista de 11 títulos com estreia prevista para a quinta-feira 22 reúne, por exemplo, cinco dirigidos ou codirigidos por cineastas mulheres. Mais relevante que este número solto é a diversidade das origens, dos projetos e das estéticas.
Numa ponta, a máquina hollywoodiana de fazer dinheiro apropria-se da agenda de grupos feministas para produzir entretenimento engajado, com A Mulher Rei. O blockbuster, dirigido por Gina Prince-Bythewood, sobrepõe empoderamento feminino e resgate de ancestralidades ao reconstituir, em modo épico, os combates de um grupo de guerreiras africanas no reino de Daomé, nos séculos XVIII e XIX.
Menos ambicioso, Não se Preocupe, Querida, segundo longa-metragem dirigido pela atriz Olivia Wilde, revisita, com olhar irônico, a década de 1950 para estilhaçar a imagem de bibelô das personagens femininas, cristalizada pelo próprio cinema de então.
Ambos os produtos exemplificam o investimento da indústria na apropriação das demandas por representatividade e revelam como essa pauta foi incorporada ao sistema que busca lucros.
Na outra ponta do pacote de lançamentos, três filmes de diretoras com ambições muito distintas expandem o conceito, muitas vezes estreito, de representatividade para abordar faces das relações pessoais e sociais que não são exclusivamente femininas, mas às quais o feminismo deu visibilidade.
O Livro dos Prazeres, produção brasileira dirigida por Marcela Lordy, vence o desafio de transpor a literatura saturada de imagens de Clarice Lispector para o audiovisual, meio em que o excesso tende a mascarar o vazio. Em vez de desperdiçar energias tentando criar equivalências, Marcela e a corroteirista Josefina Trotta especificam a questão do filme em torno dos desejos de uma mulher madura e de sua insatisfação em um mundo masculino de satisfações imediatas.
Muito mais áspera é a proposta de Desterro, primeiro longa-metragem de ficção de Maria Clara Escobar. O filme aventura-se no território das narrativas experimentais, formato que costuma afugentar o público em busca de entretenimento confortável.
A crise, um estado perpétuo no mundo contemporâneo, e o isolamento são os temas mais reconhecíveis desse filme difícil de reduzir a tópicos. Na primeira parte de uma narrativa não linear, vemos um casal que tem um filho pequeno. A convencional representação de um relacionamento em crise, feita de discussões, é substituída por cenas banais do cotidiano.
As demandas por representatividade se refletem em novos olhares sobre as relações cotidianas
No café da manhã, a interação dos dois personagens é oblíqua. Seus gestos, falas e olhares são indiretos, como se cada um estivesse mais imerso em si do que em conexão com o outro.
A repetição típica do cotidiano é o recurso ao qual Maria Clara recorre para expressar vazio e isolamento. Alcança, com essa escolha, um efeito mais enfático e empático do que aquele, em geral, provocado por meio de diálogos.
As atuações despersonalizadas e distantes do tom naturalista redobram o sentimento de estranhamento. Fora do universo doméstico, as composições e os ângulos que a diretora escolhe reafirmam a sua busca por situações de descentramento e de deslocamento.
O sentimento de querer estar em outro lugar, a reação entediada às mesmas conversas e a sensação de um mundo diluído em banalidades são traduzidos, assim, em percepções. As coisas não precisam ser ditas.
Dividido em três partes, Desterro, depois de investigar a solidão masculina, reaproxima-se de um conjunto de figuras femininas em uma longa viagem de ônibus para ouvir suas histórias e mostrar como, sob a camada uniforme da identidade, pululam inquietações, tragédias e vidas incomuns.
O resultado é desigual, muitas vezes exasperante, mas oferece a oportunidade de ver um filme que salta no abismo sem a pretensão de agradar.
O Perdão, da dupla iraniana Maryam Moghadan e Behtash Sanaeeha, adota outra forma narrativa, mais próxima da tradição, mas não menos incômoda.
Maryam faz o papel de Mina, mulher cujo marido foi condenado à morte por um assassinato. Resumir a trama implica revelar a sucessão de surpresas das quais o roteiro implacável lança mão para mostrar como um estado teocrático acua os indivíduos – deixando, em mais de um momento, o espectador com um nó na garganta.
Não é nova a vertente dos filmes que revelam os apertos por que passam as mulheres iranianas. O Perdão mira, num primeiro momento, as pressões materiais e sociais sobre uma viúva que tenta sobreviver com dignidade após a execução do marido.
O cotidiano como operária numa fábrica, a vida solitária na companhia da filha deficiente auditiva, o assédio do cunhado, o código moral que bane o menor desvio são aspectos indissociáveis desse retrato quase documental da condição feminina. A entrada em cena de um enigmático personagem masculino, no entanto, amplifica a ambição do filme.
Enquanto o poder e a lei nunca se mostram, por serem instâncias inacessíveis para a protagonista, o humano revela-se como essencialmente falho e culpado, apartado por um Deus punitivo e miseravelmente só. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “As tramas da pauta feminista “
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