Cultura

As mais belas histórias

Entre elas, a que fez aprender a não pegar doces escondido

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No final de cada capítulo de Fala, memória que estou lendo, paro pra pensar. De noite, como Vladimir Nabokov, coloco a cabeça no travesseiro na tentativa de esmiuçar a memória, ir o mais longe possível para reconstruir a caminhada, passo a passo, desde pequenininho. Até adormecer. 

De manhã, quando vejo um fio de claridade no canto da janela do meu quarto, retomo. Insisto nos sete anos de vida quando, de calça curta ia caminhando pela Rua Lavras até chegar ao Colégio Marista, onde estudava. 

Por enquanto, não me lembro de nada do segundo ano primário, do terceiro, do quarto, do exame de admissão. Lembro-me perfeitamente do primeiro ano, quando Dona Maria Augusta Toscano colocou nas minhas mãos um livro chamado As Mais Belas Histórias, de Lúcia Casasanta. 

Foi num dia de muito frio, chuva e vento. Antes de começar a aula de Língua Pátria, Dona Maria Augusta fechou a porta da sala, uma porta enorme de madeira maciça e vidro fumê, e disse: 

– Vamos fechar porque senão daqui a pouco teremos picolé de Alberto. 

Eu sentava bem perto da porta, um lugar privilegiado que dava para assistir as aulas e ver o movimento lá fora, um professor que passava, uma faxineira que varria o chão, pardais e pombos que chegavam em busca de farelos de pão. 

Minha professora tinha uma pilha de livros em cima da mesa, todos eles meio estropiados, judiados pelo tempo. Mas as mais belas histórias ali dentro, estavam intactas.

Foi nesse dia que comecei a pegar gosto pela leitura. As histórias do livro tinham uma linguagem simples e eu, que acabara de aprender a ler, conseguia ir até o fim de cada uma delas, acompanhando a leitura com uma régua que ia deslizando, frase por frase.

Era uma vez, Dona Cutia que não podia viver sossegada com as amolações dos outros bichos. Uns pediam-lhe água, outros comida, outros lenha. Uns iam visitá-la, outros faziam barulho na porta da casa. Não lhe davam um minutos de sossego. Até de noite os bichos vadios gritavam.

– Vamos à casa de Dona Cutia.

Foi paixão à primeira vista por esse livro, que tinha uma capa azul e desenhos de um espantalho, um coelho, um porquinho, três crianças, um príncipe, uma bruxa e uma Rapunzel jogando suas tranças da janela de um castelo. 

Dona Maria Augusta deixava os alunos levarem os livros pra casa, contando que não os estragassem e que trouxessem de novo para o colégio, no dia seguinte. 

Ia pegando gosto pela leitura a cada história que lia. Que me perdoe, Vladimir Nabokov, mas não me lembro de todas. Um dia vou conseguir buscar na minha memória todas elas, uma a uma. 

A galinha de tia Micaela

Guilhermina, a desastrada

Plantem árvores, meninos

Guilhermina, a desastrada, se não me falha a memória, era a história de uma menina que saiu de casa para comprar um litro de leite, no tempo em que leite vinha numa embalagem de vidro. Ela vinha sonhando com um mundo cheio de coisas que ela queria, quando tropeçou e quebrou o litro de leite, jogando seus sonhos pelo ralo. 

Eu nunca me esqueci da história daquela outra menina que foi a uma festa de aniversário e, muito gulosa, pensou em levar, escondido, um punhado de doces pra casa. Ela carregava uma sombrinha nas mãos e foi dentro da sombrinha que foi colocando os cajuzinhos, os canudinhos, os olhos de sogra, os bombons recheados com uva verde.

Despediu-se de todos e quando saiu, viu que estava chovendo. Esqueceu-se que dentro da sombrinha tinham todos aqueles doces que havia furtado e abriu, na frente de todos. Voou doces para todos os lados e ela quase morreu de vergonha.

Li e reli essa história inúmeras vezes. E cada vez que lia, sofria com aquela menina que tanta vergonha passou.

Caro Vladimir Nabokov, tenho certeza que foram essas histórias que me fizeram gostar tanto de ler e também de contar histórias. E acho que essa última, em particular, me ensinou também a nunca  pegar um doce numa festa e levar pra casa, escondido. 

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