Cultura
As cartas como refúgio e memória
Dois documentários lançados esta semana usam a correspondência para reconstituir antigas histórias de amor


Quem ainda recebe cartas, com exceção das enviadas por departamentos jurídicos ou instituições oficiais? Dois documentários que estrearam nos cinemas na quinta-feira 9 contam histórias mediadas pela correspondência. E revelam como, imersos na era da hiperinformação, perdemos parte do poder de comunicar.
Espero Que Esta te Encontre e Que Estejas Bem, primeiro longa-metragem da montadora Natara Ney, nasceu de um pacote de cartas de amor trocadas por um casal nos anos 1950, encontrado em uma feira de antiguidades.
Escrita Íntima, realizado pelo português João Mário Grilo, incorpora a correspondência a outros elementos de expressão para reconstituir o belíssimo percurso de Arpad Szenes e Maria Helena Vieira da Silva.
O casal de artistas, ele judeu húngaro, ela portuguesa, conseguiu desviar-se do apocalipse que varreu a Europa a partir dos anos 1930, exilou-se no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial e depois retornou a um recanto da França, onde produziu suas obras.
As cartas que trocaram nos breves momentos em que não estiveram juntos revelam a intensidade dos afetos e explicitam os riscos que enfrentaram como aliados. A intimidade desses escritos, exposta em expressões de tratamento como “bicho”, “bichinha”, “bichamor”, permite que o documentário ultrapasse a mera função objetiva de apresentar os trabalhos dos artistas.
Por meio dessa janela quase indiscreta, o espectador é induzido a adentrar nos espaços, a compartilhar as visões de Arpad e Maria Helena, a participar de modo sensorial e sentimental da história deles.
O procedimento adotado por Natara Ney também visa a aproximação por identificação. No entanto, em vez da acuidade peculiar das personalidades artísticas, Natara privilegia o discurso amoroso e as emoções associadas ao querer e ao sofrer.
Espero Que Esta te Encontre e Que Estejas Bem baseia-se na investigação feita pela diretora, em primeira pessoa, com o objetivo de localizar os protagonistas de uma história constituída de acasos.
Antes de alcançar seu final quase feliz, Natara Ney entrevista e registra a memória afetiva de quem conheceu o tempo em que escrever e receber cartas era um meio comum e barato de manter conexões.
Aberta à escuta, a diretora destaca discursos que associam a aceleração à perda dos vínculos, à dissipação e à superficialidade das experiências.
Pode ser só impressão.
Certo é que, quando desaparecermos, será difícil contar com e-mails e mensagens de WhatsApp para reconstituir quem fomos e o que sentimos. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “As cartas como refúgio e memória “
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