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As afinidades eletivas

Nem o nacionalismo da Semana e 22 levou o português a ser aceito como idioma para a ópera

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O ano de 2022 será pródigo em efemérides: os 200 anos da independência do Brasil e os 100 anos da Semana de Arte Moderna. Como preâmbulo para os vários eventos culturais previstos para rememorar as duas datas, o quarteto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), da qual faço parte desde 2005, realizou, na segunda semana de dezembro, uma turnê pela Itália, país onde nasci e vivi até os 33 anos.

Os concertos realizados em Roma e Florença marcaram a primeira presença da instituição na Itália. E, seja pelo repertório apresentado, seja pela recepção do público, têm muito a dizer sobre a relação entre os dois países, tanto no campo social quanto no artístico.

A compreensão recíproca entre Brasil e Itália, especificamente na linguagem da música clássica, é muito bem simbolizada pela famosa frase de Giuseppe ­Verdi (1813-1910) sobre Carlos Gomes ­(1836-1896): “Esse jovem começa onde eu termino”. Gomes foi o primeiro compositor brasileiro a ter as obras apresentadas no Teatro alla Scala, em Milão.

Tampouco podemos nos esquecer de que a estreia de um dos maiores regentes de todos os tempos, Arturo ­Toscanini (1867-1957), nascido em Parma, deu-se justamente no Brasil, numa turnê rea­lizada no Rio de Janeiro em 1886. E, já no século XX, o que dizer sobre a estreita relação que o maestro brasileiro ­Elea­zar de Carvalho (1912-1996) estabeleceu com o regente italiano Claudio Abbado ­(1933-2014)?

Nem o nacionalismo da Semana e 22 levou o português a ser aceito como idioma para a ópera

Pessoalmente, em proporções infinitamente menores, me sinto parte da história das relações entre Brasil e Itália no campo da música erudita. Além desses grandes nomes, não foram poucos os músicos italianos que, seja nos palcos, seja no ensino, ajudaram a constituir as nossas orquestras e grupos sinfônicos.

O programa da turnê do Quarteto Osesp insere-se nesse percurso. Ele incluiu o mais famoso quarteto de cordas do repertório italiano, única obra de câmara escrita por Giuseppe Verdi, um quarteto de Villa-Lobos e uma composição encomendada ao grande compositor brasileiro João Guilherme ­Ripper, que recebeu a missão de criar um “elo” entre Verdi e o último e exuberante quarteto de Heitor Villa-Lobos ­(1887-1959). O resultado são as Variações de ­Fuga Sobre a “Canção do Expedicionário”.

A partir dessas últimas duas peças, creio ser possível pensar nas influências que a música brasileira recebeu ao longo do tempo. Nelas estão abrigadas as trilhas paralelas percorridas, a busca para novas direções da linguagem e, finalmente, a cristalização, como diria Stendhal, de uma genuína identidade musical, cujos caminhos foram traçados pelo tsunami artístico que foi a Semana de 22.

Quando a Semana aconteceu, a primeira ópera em língua portuguesa, escrita e executada por um brasileiro, já havia, não por acaso, caído no esquecimento. Tratava-se de A Noite de São João, do ituano Elias Álvares Lobo (1834-1901), com livreto de José de Alencar (1829-1877), encenada em 1860, com a presença de Dom Pedro II na plateia. Mas demoraria muito para que o idioma português fosse aceito pela elite local, que o considerava pouco musical e dava preferência ao italiano.

Mesmo o grande compositor cearense Alberto Nepomuceno (1864-1920), que muito lutou para introduzir o português nos saraus musicais, não conseguiu enfrentar o preconceito que ninguém tentava sequer disfarçar.

Raízes da linguagem musical. Os compositores e maestros Giuseppe Verdi, Carlos Gomes, Arturo Toscanini e Heitor Villa-Lobos

Também Carlos Gomes se viu impossibilitado de mudar essa tradição e, por causa do conservadorismo fanático das elites, Carlos Gomes manteve o idioma italiano mesmo em óperas de temática nacional, como Il Guarany ou em Lo Schiavo. Também a linguagem musical ficava extremamente ligada à tradição europeia, como demonstra o comentário de Verdi.

Essa raiz sempre foi tão constitutiva da música clássica brasileira que os próprios representantes do modernismo beberam da fonte italiana ou francesa. Foram esses os casos de Villa-Lobos e Claudio Santoro (1919-1989), ou, em época mais recente, de Almeida Prado (1943-2010).

Como teve então início a fase de cristalização de uma linguagem e de uma identidade genuinamente brasileiras? Acredito que os novos direcionamentos que a música estava tomando na Europa do início do século XX favoreceram uma busca por linguagens que não fossem, simplesmente, uma cópia dos trabalhos europeus.

Durante décadas, as realizações das correntes nacionalistas foram somente etapas no longo caminho para a construção de uma nova identidade. É curioso notar, de toda forma, como os nossos maiores compositores, acabaram sempre por conseguir superar essas etapas, e incorporar novos elementos à linguagem consagrada.

Tanto é assim que, em seu último quarteto, o Quarteto de Cordas nº 17, apresentado nessa turnê italiana, Villa-Lobos não renega as lições impressionistas e suas pinceladas sem forma, nem a experiência atonal e nem mesmo a etapa do nacionalismo. Tudo isso está presente e vivo, mas incorporado em um novo organismo artístico, que inclui os cantos da nossa natureza, a diversificação dos idiomas musicais e a convivência de vários ritmos e ainda de contradições harmônicas. O que em outro compositor poderia parecer “estranho”, em Villa-Lobos soa óbvio e natural.

A convivência, em único programa, de Verdi, Ripper e Villa-Lobos, nessa viagem do Brasil às raízes de sua música erudita, mostra o quanto as obras de arte são capazes não apenas de conectar mundos e linguagens, mas de anular o espaço temporal e incorporar-se a um único respiro criativo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1188 DE CARTACAPITAL, EM 16 DE DEZEMBRO DE 2021.

CRÉDITOS DA PÁGINA: AFP, ARQUIVO NACIONAL, LIBRARY OF CONGRESS U.S. E FUSION/OSESP

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