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Retratos Fantasmas, exibido em Cannes, oferece uma radiografia das mudanças bruscas das cidades brasileiras

Cine-memória. No novo trabalho do diretor Kleber Mendonça Filho, as velhas salas do rua do Recife são revividas por meio de imagens de arquivo e relatos – Imagem: João Carlos Lacerda e Victor Jucá
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Das 3,4 mil salas de cinema existentes no Brasil, só 370 não ficam em um shopping center. E dos 75 milhões de ingressos vendidos este ano no País, só 1 milhão foi para um filme brasileiro. Tais dados, embora exteriores a Retratos Fantasmas, não deixam de roçar alguns dos sentidos presentes no ­novo trabalho de Kleber Mendonça Filho.

Exibido pela primeira vez no Festival de Cannes, em maio, e em cartaz no Brasil e em Portugal desde a quinta-feira 24, Retratos Fantasmas é descrito, no texto de divulgação, como um filme cujo personagem principal, o centro do Recife, é “revisitado através dos grandes cinemas que serviram como espaços de convívio durante o século XX”.

Como escreve o pesquisador norte-americano Edward Epstein no livro O Grande Filme, em 1947, 90 milhões de americanos, de uma população de 151 milhões, iam todas as semanas ao cinema. Havia então mais cinemas que farmácias no país. No filme de Mendonça, as salas revividas por meio de imagens de arquivo e relatos nos levam a essa era.

Declaração de amor às imagens e radiografia das mudanças bruscas e ruidosas que vão transformando as cidades brasileiras, Retratos Fantasmas pode ser definido também como um “filme de cinema”. Entrado nos 50 anos, Mendonça junta-se ao rol de diretores que, em certo momento da carreira, tomam o próprio ofício como matéria narrativa. Os ­Fabelmans (2022), de Steven Spielberg, é um exemplo recente de autobiografia que se encaixa na ideia de cine-memória.

Mendonça, diretor das ficções O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e ­Bacurau (2019) – vencedor do Prêmio do Júri em Cannes – foi crítico, programador de cinema da Fundação Joaquim Nabuco e hoje é curador-chefe do Cinema do Instituto Moreira Salles.

“Não quero parecer o tiozão, mas acho muito digno defender a sala de cinema”

Sua cinefilia e seu gosto pela artesania das imagens – ou por aquilo que, nos primórdios da indústria, se chamava trucagem – estão impressos nesse documentário que ele prefere não enquadrar na cateogria documentário.

Ao nascer como projeto, Retratos Fantasmas chamava-se Os Cinemas do Centro do Recife. Acontece que, no meio do caminho, havia não uma pedra, mas outro filme. “Quando faz um filme, você tem de ouvi-lo. Ele fala coisas”, diz, por Zoom, a CartaCapital, na manhã seguinte a uma das muitas pré-estreias realizadas nas últimas semanas.

E o que o filme sobre as salas e sobre o senhor Alexandre, projecionista do Art Palácio, disse é que faltava a si mesmo um pouco mais de alma. E foi assim que entraram em cena outro lugar e outra pessoa: o apartamento onde o diretor cresceu, viveu e filmou por décadas e sua mãe, a historiadora Joselice Jucá, que morreu em 1995.

“Esse momento (de reflexão sobre os caminhos do filme) coincidiu com o processo de mudança da nossa família do apartamento. De repente, comecei a gostar muito da ideia de explorar aquele lugar. Tínhamos 20 anos de imagens do apartamento, e isso me pareceu uma oportunidade incrível de fazer um exercício da montagem”, diz. “O filme deixou assim de ser um filme de teoria e virou um filme de coração. E o apartamento que ocuparia cinco minutos passou a ocupar 25 minutos.”

À memória familiar se somam reflexões sobre o espaço urbano, tema relevante em sua obra, e sobre o cinema como experiência partilhada em um mesmo espaço por um conjunto de pessoas: “O filme fala­ sobre o ato de ir ao cinema a partir de construções e estruturas arquitetônicas”.

“Não quero parecer o tiozão, mas acho muito digno defender a sala de cinema”, diz. “Acredito na soma. Somar experiências é sempre muito bom. Não quero cortar a sala e ir direto para o streaming. Quero que o filme tenha todo tempo que ele precisa na sala e que depois chegue ao streaming, vá para a tevê fechada e então para a televisão aberta, se alguém quiser comprar.”

Retratos Fantasmas terá, inclusive, uma cópia em 35 milímetros, feita em Londres. “Essa cópia é, obviamente, um gesto simbólico”, diz, puxando o fio de outro tema que se justapõe à produção, o dos arquivos. “Parte do nosso investimento foi apresentar os arquivos da melhor maneira possível”, diz. “E isso ­custa dinheiro. Há uma tendência a se usar o material como ele está, no YouTube ou no VHS, e eu não queria isso.”

Um dos arquivos a surgir na tela com forte carga emocional é aquele em que a mãe do diretor aparece dando uma entrevista sobre suas pesquisas em uma reportagem da TV Globo. Mendonça tinha essa imagem em VHS e disse desconfiar de que, no acervo da Globo, seria possível encontrá-la em 16 milímetros.

“Passamos mais de um ano vendo a imagem em baixa resolução e então, em abril, chegou o arquivo em alta definição. Foi um choque. É como se, durante quase dois anos de montagem, eu tivesse a mediação da imagem em baixa resolução e, com a sua chegada em alta resolução, ela se aproximasse mais de mim. E ainda teve outro estágio, que foi a correção de cor. Aí ela veio ainda mais para perto. Foi muito impressionante.”

Retratos Fantasmas deixa evidente que fazer filmes, para Mendonça, não é um prolongamento da vida. É algo concomitante a ela. •

Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arquivos sobre o hoje’

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